Todos nós já vimos este filme: um caubói em frente a outro. O povo da cidade observa atento. Eles trocam olhares. O feno passa rolando pela rua empoeirada. Um deles saca seu revólver e atira. O outro homem cai. E há também aquela típica situação do forasteiro que entra no bar, fazendo com que todos que ali estavam se calem e se olhem receosos pelo que virá a acontecer. Todas essas situações, muitas vezes tidas como clichês cansados dos filmes de "bang bang", contém ideias e temas muito mais profundos do que possam aparentar.
A meu ver, de todos os gêneros cinematográficos, o western, ou faroeste, é aquele com o mais profundo legado.
Os símbolos ali criados transcendem o pano de fundo histórico de onde eles vêm, e tratam de temas que vão além de questões que dizem respeito apenas aos americanos.
Os tipos criados ali se encontram em todos os gêneros, e são de enorme influência na cinematografia mundial, em diferentes períodos. Em tempos mais recentes, esses símbolos têm sido invertidos e atacados, num esforço de desconstrução que revela muito sobre nossa cultura.
Muitos dizem que o faroeste como o conhecemos hoje nasceu em 1902, com a publicação de The Virginian de Owen Wister. Lá, vemos a formação do caubói como o verdadeiro herói americano.
Como dito em The Virginian pelo seu narrador, ao conhecer esses homens do campo, ele afirma:
"A criatura que chamamos cavalheiro vive profundamente no coração de milhares que nunca se darão conta das formas externas do tipo".
Isto é, estes homens simples possuem preocupações morais elevadas, e são capazes de usar a sua força para fazer o bem e trazer a ordem, seja domando a natureza ou exercitando a justiça frente a homens perversos. Essa construção não é por acaso. Theodore Roosevelt, amigo pessoal do autor e 26º presidente dos EUA, disse a Wister, conforme a lenda:
"Faça-os como os cavaleiros medievais".
E é isto que vemos nos faroestes clássicos. Masculinidade virtuosa e força a serviço de um ideal maior, a serviço da comunidade. Esta é, pode-se dizer resumidamente, a expressão mais nobre do gênero, e seu legado.
Owen Wister faz parte de algo que vejo como as três principais bases estéticas e temáticas do gênero faroeste tanto no cinema quanto na pintura e na literatura. Wister com sua literatura cria essa ideia do "cavaleiro do novo mundo", e consolida os tipos e situações que marcam o gênero. Já o pintor Frederic Remington povoa o imaginário visual através de suas telas, mostrando esses homens em momentos dramáticos, cercados pela paisagem que não é apenas um pano de fundo, mas é a própria fronteira, o limite da civilização.
Quem combina esse imaginário visual ao literário, elevando aqueles tipos e o gênero como um todo ao seu nível máximo é, na minha opinião, o grande cineasta John Ford.
Ele aborda o gênero num momento de crise, quando eram considerados filmes populares de segundo escalão, filmes B, na década de 30. Com o lançamento de "No Tempo das Diligências" (1939) ele revigora o gênero, unindo o que Wister e Remington criaram separadamente, condensando esse imaginário para por fim colocar no cinema melhor que ninguém o "mito civilizatório da América".
Filmes como "O Céu Mandou Alguém" (1948) , "Rastros de Ódio" (1956) e "O Homem que Matou Facínora" (1962) são apenas alguns dos grandes filmes do gênero realizados por este mestre do cinema.
Como disse Orson Welles, aquele que muitos tem como o diretor do melhor filme de todos os tempos, "Cidadão Kane" (1941), quando questionado sobre quais eram seus diretores favoritos, ele respondeu "(...) eu prefiro os velhos mestres, e com isso quero dizer John Ford, John Ford e John Ford".
Se o gênero antes de Ford já tinha os temas de superação da natureza e de força masculina usada com virtude para o bem, ele, por sua vez, coloca melhor que ninguém a noção de que a promessa da América, algo que é mais uma ideia que um lugar no mapa, é a possibilidade de pessoas se integrarem à comunidades que buscam viver esse sonho de liberdade, com tudo que isso implica, independente de suas origens.
O respeito mútuo entre homens fortes é um componente vital. Aquilo que anima o espírito verdadeiramente americano para Ford é a combinação de autossuficiência e integração ao grupo simultâneos.
Não à toa, em tantos de seus filmes, os personagens cantam Shall We Gather At the River, hino cristão que convoca os fiéis a rezar às margens do rio. O espírito de liberdade individualista, que às vezes é associado àquele povo, não é o que predomina aqui. O que esses personagens buscam neste mundo é algo mais elevado.
Wister, Remington e Ford são todos homens do Leste que vão para o Oeste, isto é, homens que vêm das partes a mais tempo habitadas pelos colonos europeus e portanto mais desenvolvidas, mas que vão à fronteira, ao limite da civilização, e conhecem o que lá habita.
Descobrem então algo que não se encontrava em Nova York, Philadelphia ou Boston com tanta facilidade naquele tempo; uma vida difícil - porém virtuosa - sendo vivida dia após dia pelo homem comum temente a Deus; o verdadeiro sal da terra. Não à toa, os americanos chamam a região meio-oeste do país, onde essas histórias normalmente se passam, de Heartland, o coração da América.
O filme "Os Brutos Também Amam" (1953) de George Stevens é uma excelente síntese da formação daquela cultura que esses três grandes artistas conheceram e celebraram.
Um pistoleiro desconhecido chamado Shane chega a uma pequena fazenda onde uma família vive. Ele oferece seus serviços para cuidar da terra e dos animais ao fazendeiro, mas mostra indícios de um passado violento, o qual gostaria de esquecer. Logo, a família o aceita.
No entanto, as circunstâncias o levam a usar sua habilidade com as armas para defender a família de outros fazendeiros gananciosos. Ele defende sua nova família, mas logo cumprida essa tarefa ele se vê desnecessário e vai embora.
Parte da alma do faroeste é a ideia de que a violência usada para o bem é o que torna a civilização possível, portanto o objetivo real do homem bom capaz de violência é tornar-se obsoleto. O pistoleiro precisa, eventualmente, tornar-se o fazendeiro.
Um dos meios para tanto é o estabelecimento de uma família, integrando a força feminina como algo que orienta o esforço empreendido nesse espaço no limite da civilização, e se torna seu real objetivo. Um filme excelente sobre a força do feminino no Oeste é “Rio Vermelho”’de Howard Hawks, disponível na plataforma da BP.
Um dos cineastas que melhor compreendeu o faroeste, não apenas em sua estética e símbolos mais proeminentes, mas também a maneira como o gênero trabalhava a questão da masculinidade e seu papel na sociedade, foi o diretor japonês Akira Kurosawa.
Ele traduz o caubói para a forma do samurai, e a conduta reta do homem bom da fronteira para o código de honra do samurai. “Os Sete Samurais” (1954) tem toda a estrutura de um faroeste, combinada com as particularidades da cultura japonesa.
É surpreendente o nível de sinergia que este encontro tem quando em mãos habilidosas de um mestre como Kurosawa. Em entrevista, perguntaram-lhe como ele tinha desenvolvido a habilidade visual impressionante que se nota em seus filmes: se havia estudado pintores japoneses ou europeus. Kurosawa apenas respondeu “eu estudei John Ford”.
Curiosamente, após alguns anos, produtores americanos decidiram adaptar "Os Sete Samurais" em um faroeste chamado "Sete Homens e um Destino" (1960). O filme foi um sucesso de bilheteria, teve uma sequência e um remake novo em 2016.
No final dos anos 60 e início de 70, Hollywood virou do avesso. Uma nova geração chegou, uma nova visão foi posta em cena. As convenções do faroeste já não atraíam o público, e os novos cineastas estavam mais interessados na desconstrução desses símbolos do que em tentar explorá-los. Curiosamente, é na Itália que o gênero ganha novo vigor, com os chamados “spaghetti western”.
O grande expoente foi Sergio Leone, com sua famosa Trilogia dos Dólares: "Por Um Punhado de Dólares" (1964), "Por Uns Dólares a Mais" (1965) e "Três Homens em Conflito" (1966).
Leone tinha um estilo único e inovador, que influenciou muito as gerações seguintes, em especial Quentin Tarantino. Seus filmes são excelentes e rejuvenesceram o gênero, no entanto estão muito distantes dos clássicos americanos em suas preocupações temáticas.
Nos filmes de Leone, as situações mais impactantes dos faroestes são destiladas e aumentadas, num experimento que se preocupa muito mais com o conteúdo estético dos faroestes do que com seu universo simbólico. No lugar do desenvolvimento de personagens, a ênfase fica nos tiroteios e duelos.
Nas palavras do próprio Leone “…eu vejo a história do Oeste como o reino da violência pela violência”. Após Leone, os spaghetti western se tornaram um estilo à parte, com pouco apreço por aquilo que os velhos mestres americanos estavam buscando. Para John Ford, Anthony Mann e Howard Hawks os personagens em seus filmes apontam para pessoas e situações possíveis, e em algumas vezes reais, mesmo trabalhando-os em histórias ficcionais. Os italianos, por sua vez, pareciam não se importar com isso.
Para os italianos, o faroeste era um estilo estético, um conjunto de situações que podiam ser exploradas de maneiras diversas. Quase como um vaudeville da violência; um universo que dizia respeito àquilo dentro dos próprios filmes apenas, fortemente auto referencial. Filmes como "Django" (1966) de Sergio Corbucci vão ainda mais longe nessa direção.
No Oeste americano real existiram histórias e personagens reais que inspiraram esse universo. Famosos são os foras da lei Jesse James e Billy the Kid, mas há também exemplos de virtude como é o caso do xerife Wyatt Earp.
Enquanto xerife ele enfrentou uma gangue de foras da lei no famoso tiroteio no O.K. Corral que foi eternizado por John Ford em "A Paixão dos Fortes" (1946) e em diversas outras adaptações para as telas. Existiram aqueles homens corajosos que fariam a coisa certa mesmo em situações de perigo. É a eles que os antigos mestres se referiam, mesmo que de forma indireta.
Hoje o gênero é ocasionalmente visitado por Hollywood. Algumas produções se destacam como "Onde os Fracos Não Têm Vez" (2007) de Joel e Ethan Coen, ao usar contexto histórico mais próximo ao contemporâneo combinado com temas e símbolos do gênero para explorar algo interessante e, a meu ver, duradouro. Outro, como "Hostis" (2017), de Scott Cooper, é mais próximo ao típico do faroeste, mas não tem a mesma força dos clássicos.
Mas não é apenas a linguagem visual desenvolvida pelo faroeste que segue influenciando o cinema contemporâneo. Também os tipos de personagens criados dentro do gênero ainda persistem em outros tipos de histórias.
O personagem Star-Lord, de "Guardiões da Galáxia", é uma espécie de caubói, um rebelde do coração de ouro. Este, por sua vez, inspirado em outro caubói do espaço, Han Solo, da saga "Star Wars", que tem todos os maneirismos do pistoleiro egoísta que descobre o valor de lutar por algo maior que ele mesmo.
Esses personagens demonstram que os tipos explorados no faroeste remetem a questões mais profundas do que apenas os problemas explorados na fronteira americana do séc XIX.
E ainda no território dos super heróis, o filme que é mais diretamente um faroeste é "Logan" (2017). A meu ver, esse filme é uma espécie de "Os Imperdoáveis" (1992) do mundo dos X-Men e, além disso, faz referência direta a "Os Brutos Também Amam" (1953). O personagem Logan é claramente inspirado em Shane, e ambos restabelecem a ordem, se tornam obsoletos e se vão.
Essa doação de si ao se submeter ao sacrifício para restabelecer a ordem e tornar a paz possível pode ser uma conexão poderosa ao herói de todos os heróis; o próprio Cristo. Esta é talvez a raiz e a força real de todas essas histórias, e a possível explicação de seu alcance duradouro e universal.
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