Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
O filósofo inglês Bertrand Russel um dia afirmou:
“O truque da filosofia é começar por algo tão simples que ninguém ache digno de nota e terminar por algo tão complexo que ninguém entenda”.
Logo em seguida o velho Bertrand emenda:
“A estupidez coloca-se na primeira fila para ser vista; a inteligência coloca-se na retaguarda para ver”.
Processos terapêuticos pautados na filosofia muitas vezes desnudam a nossa possível estupidez frente alguns assuntos que julgamos entender, mas, na realidade, desconhecemos por completo.
Calma amigo leitor, não fique chateado comigo. Quando falo possível estupidez me refiro aos nossos comportamentos automáticos que, em muitas ocasiões, nos tolhem o discernimento.
Isso comumente é visto em clínica, quando o partilhante – nome dado ao paciente da Filosofia Clínica Integral – inicia um discurso sobre valores: “Meu pai era um homem de muitos valores!”; “A educação dos meus filhos é pautada em valores”.
Arguidos quais seriam esses valores, a maioria dos partilhantes afirma sem titubear: “Família; respeito; honestidade”, a trindade mais citada quando o assunto são os que permeiam a questão valorativa. Porém, o que é um valor?
Em um maravilhoso livro chamado Ética, a arte do bom, Antonio Marchionni nos fala:
“Os valores são metas valiosas, que a pessoa (ou sociedade) se prefixa como objetivos de vida. As virtudes são ações excelentes, aptas a realizar aquelas metas. O valor diz o que quero alcançar na vida, a virtude diz quais ações praticar no dia-a-dia para chegar lá”.
“São valores, por exemplo, a serenidade de espírito, o prazer, a profissão alegre, a união familiar, a paz social, a independência econômica, a amizade, o filosofar, a realização pessoal. São virtudes a prudência que nos torna serenos, a temperança que dá prazer, a pontualidade que nos torna bons profissionais, a fidelidade que mantém a união do casal, a partilha que realiza a sociedade justa, a solércia que nos faz economicamente independentes, a prontidão que alimenta a amizade, o exercício da discussão que nos torna filósofos e sábios”.
Ainda que Marchionni nos apresente a definição de valores e de virtudes, deixemos a investigação das virtudes para um próximo artigo e vamos nos ater somente ao objeto do presente texto, ou seja, nossas metas de vida. O que queremos atingir ou mesmo preservar.
Há cinco anos eu tive o prazer de conduzir um processo terapêutico com uma simpática senhora de cinquenta e cinco anos que aparentava, no mínimo, quinze anos a menos.
Bonita, bem-sucedida profissionalmente, mãe de uma linda menina de quinze anos de idade e casada com um profissional da área da saúde.
No entanto, seu casamento era extremamente conturbado, se é que podemos chamar aquele tipo de relação de casamento.
Os cônjuges dormiam em quartos separados; brigavam como cão e gato; a vida íntima tinha deixado de existir no nascimento da filha; a relação da mãe com a filha era péssima; e o pai – o queridinho da filha -, praticava recorrentemente o adultério, humilhava a mãe diariamente, mimava a filha concedendo a ela toda sorte de vícios possíveis, desde ingressos para shows de funk, acesso irrestrito às tecnologias e às mídias sociais, e até viagens ao exterior regadas de farto consumismo de futilidades.
O pai também não demonstrava qualquer tipo de interesse em participar de um processo clínico destinado à reestruturação do matrimônio.
A falta de unidade era a tônica do relacionamento, e como já vimos em um artigo anterior, isso é devastador para a formação do caráter de um filho.
Quando chegou a hora de investigarmos os valores desta minha partilhante, como de costume e sem titubear, a trindade foi conclamada: “Família, respeito e honestidade”.
Como já havia interseção suficiente entre nós, ousei argui-la sobre a dissonância entre sua fala e sua vida.
Sua família estava destruída; a falta de respeito imperava soberana no lar; e ela não estava sendo honesta nem mesmo consigo mesma, uma vez que, para a sociedade, a família posava como um modelo a ser seguido e em seu interior o que se podia encontrar era somente tristeza, desilusão e amargura.
Permita-me uma digressão. Sou um terapeuta que não mede esforços para resgatar matrimônios. Contudo, não sou o tipo romântico que se desinstala da realidade com facilidade.
Existem casamentos irrecuperáveis, e a insistência em mantê-los acaba sendo devastadora para todos os envolvidos, principalmente os filhos.
Até mesmo a Santa Igreja Católica permite, em alguns poucos e específicos casos, a abertura de processos de nulidade matrimonial.
Não afirmo que este matrimônio pudesse ser anulado pela Santa Igreja, mas, as relações entre os três integrantes da família eram tão desarmônicas e destrutivas, que a separação provavelmente seria um mal menor.
Quando arguida por mim sobre os reais motivos de sua insistência em uma relação tão adoecida e contaminada, com lágrimas nos olhos ela afirmou sentir medo da possibilidade de vir a passar necessidades financeiras.
Seu marido, apesar de tudo que foi dito, concedia a ela uma vida nababesca de ostentação e caprichos.
Luxo, ostentação e pompa eram a tônica da sua vida, e o que a permitia sobreviver em meio a um relacionamento miserável em termos de afeto, companheirismo e amor.
Arriscando perdê-la como partilhante, com firmeza, mas sem abdicar da docilidade, afirmei categoricamente que o supremo valor que a regia era o dinheiro e não a família, o respeito e a honestidade.
Neste momento seus olhos se encheram de lágrimas e, depois de uma aula terapêutica sobre o real significado de um valor, minha partilhante se deu conta que prostituía sua dignidade, sua maternidade e sua vida.
Depois desta sessão ainda trabalhamos juntos por um ano, e somente depois disso ela encontrou coragem para seguir a sua vida sendo orientada por valores mais consonantes e que a permitiram tentar reconstruir sua estrutura psíquica e sua relação com a filha.
Como dito acima, sou um terapeuta que luta pelo resgate de matrimônios, e não posso esconder meu orgulho ao afirmar que, na maioria das vezes, tenho sido bem-sucedido neste ofício.
Entretanto, os poucos processos em que não obtenho sucesso, como este que agora divido com você, já são suficientes para me deixar triste, pois, na maioria das vezes, todos esses dramas poderiam ser evitados se olhássemos com mais cuidado para alguns pequenos detalhes que podem gerar grandes e perniciosas consequências.
Quando lido com questões similares a esta em meus atendimentos, invariavelmente lembro da frase de Bertrand Russel do início deste texto.
No senso comum costumamos usar as palavras de maneira pouco reflexiva. Se passássemos a pensar mais seriamente o que estamos querendo dizer quando fazemos referência aos nossos valores, por exemplo, provavelmente diminuiríamos sensivelmente a quantidade de besteiras que fazemos no decorrer de nossas vidas.
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar