Elton Mesquita é escritor, tradutor e roteirista na Brasil Paralelo. Seus textos fazem valer sua crença de que tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente.
Sobre arte, especificamente, o estado da questão é o seguinte:
O pós-modernismo expandiu o conceito de arte até este se tornar inútil: arte é aquilo que o texto-suporte disser que é (e por isso de vez em quando lemos notícias sobre obras de arte sendo jogadas no lixo por zeladores de museu incautos: eles não leram o texto-suporte). Para quem presta atenção, o imperador já tem andado nu há muitas décadas. Tom Wolfe fala sobre a relação espúria entre a obra de arte e o texto que a acompanha em um de seus melhores ensaios, o "The Painted Word".
A primeira criança a apontar para o imperador foi o próprio Marcel Duchamp com seu “Urinol”, que vaticinou ali o futuro de toda empreitada artística ocidental: arte agora será o que o artista (e sua panelinha) decretarem que é arte. O aviso não foi compreendido, a piada foi levada a sério, e assim nasceu a besta-fera que conhecemos como “arte conceitual” (que continua rendendo piadas, que continuam sendo levadas a sério): o pintor Al Held denunciou a arte conceitual como o mero ato preguiçoso de “ficar apontando pras coisas”.
O artista conceitual John Baldessari passou recibo da provocação e pagou vários artistas para pintar quadros de mãos apontando para coisas. É impossível não lembrar do conceito da filosofia zen que fala do “dedo que aponta para a Lua” (o dedo é importante, pois aponta para a Lua, mas é a Lua, e não o dedo, que deve ser o foco de nossa atenção): cada vez mais a arte moderna deixou de representar a Lua, e passou a representar o dedo apontado.
O gesto inaugural de Duchamp rendeu e continua rendendo muitas presepadas, como a do artista Michael Craig-Martin, que em 1973 criou a obra "Um Carvalho", que seria um “copo d’água transubstanciado em carvalho pela vontade do artista”, uma afirmação soberana do poder que o artista tem de mudar a realidade meramente pelo poder - não mais da obra, mas do que se diz sobre a obra.
Mas a realidade é tenaz: quando “Um Carvalho” foi fazer uma turnê pela Austrália, a alfândega australiana impediu a obra de entrar no país pois, levando o texto-suporte a sério, aquilo entraria na categoria “vegetação”. Para que sua obra pudesse entrar em território australiano, Craig-Martin teve que admitir que tratava-se na verdade de um simples copo de água.
Mas sigamos: uma vez que os intelectuais do pós-guerra decretaram a morte da arte por exaustão, tédio (ou trauma, usando variações de “depois de Auschwitz, não é mais possível fazer poesia”, relincho famoso de Theodor Adorno), o que restou foi fazer a autópsia, e assim o pós-modernismo tornou-se um grande necrotério debruçado sobre “investigações sobre a arte” (no mais das vezes, punhetas no cadáver). Ortega y Gasset já havia detectado um movimento nessa direção no “A Desumanização da Arte” — uma arte separada das preocupações, angústias e epifanias cotidianas e ingênuas do mero animal humano, cada vez mais preocupada com questões de técnica e conceito, remotamente intelectual e umbigóide.
É nesse ponto que estamos agora: arte é aquilo que a galeria e a galera disserem que é arte. Arte é comentário sobre a arte, é a reação do público, é a repercussão na mídia, é a pegadinha financeira a la Damien Hirsch (fazer um banqueiro comprar um tubarão fatiado numa caixa de formol por 50 milhões de dólares). E, é claro, uma vez que o valor estético de uma obra tornou-se questão de relações públicas (lábia), a arte agora é também um ótimo esquema para lavagem de dinheiro.
A abordagem pós-moderna é autodestrutiva, de forma tão evidente e inevitavelmente mecanicista como um rio correndo para o estuário: algo que tente ser tudo acaba não sendo nada. Se tudo pode ser arte, arte já não é nada de tão especial assim. E de fato, muitos artistas anteciparam-se a essa crítica e construíram toda a sua obra sobre o alicerce da “dessacralização”/banalização da arte, obtendo prestígio e remuneração apregoando que o que fazem não é especial, como a obra "My Bed", de Tracey Emin (o fato de suas obras assumidamente, propositalmente banais estarem sob os holofotes das galerias de arte e dos cadernos culturais apenas adiciona mais uma camada irônica prontamente incorporada aos seus projetos, como a piscadinha de olho de um gigolô para uma de suas meninas).
Assim, a quem pergunta, a única resposta possível é: sim, as obras de arte como as da exposição Santander (que provocaram alvoroço por representarem crianças em contextos sexualizados) são arte, sim, só que isso não quer dizer mais grandes coisas. Na verdade, não quer dizer mais nada. De modo geral, a arte nacional é, como um amigo meu disse uma vez, “uma tentativa bem-sucedida de realizar algo muito pequeno”. Os artistas nacionais hoje em dia são como as crianças que vão jogar bola depois que os adultos saem do campo: tem muita coisa interessante acontecendo na arte moderna lá fora, especialmente na interseção da arte com a tecnologia, mas aqui no Brasil os cadernos culturais fazem escarcéus sobre a obra de não sei qual novo expoente de uma nova linguagem... daí você vai ver e são tipo uns stêncil.
Tudo está como deve estar nos domínios de Mammon: antigamente havia a imagem romântica do artista pobre, morrendo endividado, mas eternizado por suas obras pela posteridade. Já os artistas contemporâneos brasileiros não correm o risco de morrer à míngua, já que sempre haverá empresas querendo l̵a̵v̵a̵r̵ ̵d̵i̵n̵h̵e̵i̵r̵o̵ abater imposto (“fomentar o debate”, segundo o jargão especializado). Mas esses artistas estão condenados pela própria mediocridade a ser notas de rodapé na história da arte (e pior, na história da arte brasileira).