Dr. Marcello Danucalov

Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.

Um homem que não lê está fadado à eterna solidão

No céu da mente dos imaturos voa somente uma única gaivota. Homens maduros navegam por céus repletos de pássaros. E você, está conformado em voar sem companhia alguma ou decidiu cruzar o céu ao lado de centenas de gaivotas?

Dr. Marcello Danucalov

Cresci envolto aos livros e com pais que todos os dias me concediam o exemplo deste saudável hábito, pois tanto papai quanto mamãe, liam diariamente. 

Como só aprendemos por imitação, devo a eles a aquisição deste comportamento que todos nós deveríamos desenvolver durante nossa vida.

Contudo, é inegável que a conquista do hábito da leitura pode ser facilitada pela presença em nossa mente de um elemento psicológico, provavelmente congênito, e que o psicólogo francês Rene Le Senne chamou de paixão intelectual (P.I); uma força interna que naturalmente direciona alguns indivíduos a querer saber como as coisas do mundo são

As pessoas que foram agraciadas com este elemento gostam de saber pelo simples prazer de saber, mesmo que o conteúdo absorvido não lhes seja útil para a realização de nada prático em sua vida. 

Aqueles que não nasceram com uma paixão intelectual forte terão que se esforçar um pouquinho mais para desenvolver o hábito da leitura, mas isso é plenamente possível.

Se você não foi presenteado por Deus com esse elemento psíquico que lhe concede uma paixão pelo saber, talvez você possa ter algum outro tipo de paixão dominante habitando a sua estrutura de pensamento; algo que você realmente nutra um grande interesse: música; esportes; os mistérios do universo; gastronomia etc. 

Se este é o seu caso, saiba que uma das maneiras mais eficazes de desenvolvermos o hábito da leitura em nós e em nossos filhos é iniciar esta jornada lendo sobre algo que você realmente ame. Deixe-me dar-lhe um exemplo concreto.

Quando meu filho Noa tinha nove anos ele aprontou uma travessura e eu precisei corrigi-lo.

Como naquele tempo ele já era totalmente apaixonado por surfe, outorguei a ele a possibilidade de escolher a consequência do seu ato, concedendo-lhe duas possibilidades:

⎯ Filho, você pode escolher uma das duas alternativas. A primeira delas é ficar quinze dias sem surfar; a segunda é ler um livro que versa sobre a história de um surfista havaiano chamado Eddie Aikau. 

Noa prontamente escolheu ler o livro, pois, não queria ficar sem surfar e ficou seduzido com o que eu lhe falei a respeito da vida de Eddie Aikau. Na orelha do livro A História de Eddie Aikau, Herói Havaiano: Eddie Would Go podemos ler:

A história de Eddie Aikau, herói havaiano - Eddie Would Go – é a única biografia de um dos maiores heróis havaianos. Eddie Aikau foi um homem tímido; como surfista, surfou as maiores ondas do mundo; como salva vidas, salvou centenas de vidas nas traiçoeiras águas do North Shore; e, como um orgulhoso havaiano, sacrificou a sua vida para salvar seus companheiros que estavam a bordo da Hokule`a. Mais do que a biografia de um corajoso homem do mar, A História de Eddie Aikau, Herói Havaiano: Eddie Would Go, de Stuart Coleman, conta também a história do Havaí moderno e o papel de Eddie no renascimento havaiano nos anos 1970. O livro é baseado em numerosas entrevistas com familiares e amigos de Eddie, junto com alguns dos principais homens do mar e intelectuais havaianos, Coleman entrelaça todas as memórias numa excitante e informativa história. Explorando sua lendária vida e legado, esse livro mostrará porque Eddie transformou-se num permanente ícone do Havaí e do mundo do surfe.

Provavelmente algum psicólogo pós-moderno afirmaria que eu cometi um erro, pois associei a leitura a um castigo, e isso poderia afastar meu filho do hábito da leitura para sempre.

Todavia, eu sabia muito bem o que eu estava fazendo. Conhecia a paixão do Noa pelo surfe e pelo oceano, e intuí que a leitura lhe seria agradável e cativante. 

Noa leu o livro de trezentas páginas com extremo interesse, e absorveu grande parte do seu conteúdo

Com isso consegui atingir os dois objetivos que eu tinha naquele momento: mostrar-lhe que todo ato tem uma consequência; e estimular nele um futuro gosto pela leitura.

Ler um livro é uma benção para nós e para aqueles que convivem conosco. Em resumo, é isso que afirma o queridíssimo professor Rodrigo Gurgel:

O que torna uma pessoa interessante? Imagine que você conhece uma pessoa nova. Lentamente, encontro após encontro, começa a ficar claro que ela tem características que você nunca tinha encontrado em ninguém. Existe algo de peculiar nela, algo que você não consegue definir. A cada conversa, essa pessoa demonstra uma habilidade especial para entender ideias a respeito das quais vocês conversam. Ela sempre apresenta um ponto de vista inesperado, sempre consegue enxergar as coisas sob ângulos que você nunca tinha imaginado. Mas não só isso, essa pessoa também não se repete. Ela conversa horas seguidas, sobre os mais diferentes assuntos, sem ser cansativa. E ela também não é pedante, não demonstra arrogância, não usa palavreado difícil só para parecer inteligente. 
Um dia, ela te convida para um churrasco. E, logo que entra na casa, você descobre que aquelas qualidades todas se desenvolveram a partir de um hábito que ocupa a casa inteira: Há livros por toda parte. Não são milhares de livros, ela não tem uma biblioteca descomunal, mas você nota que aqueles livros, muitos deles antigos, foram realmente lidos. Nesse dia você entende o caminho que essa pessoa percorreu para transmitir toda a segurança e coragem que você não sabia de onde vinha. 
Quando volta para casa, antes de dormir, você começa a pensar nessa sua nova amizade. Essa pessoa não é rica, não é um intelectual citado todos os dias na mídia. Mas ela está diante de você transpirando sabedoria com absoluta naturalidade, sem afetação. Com isso, pela primeira vez na vida, você percebe que o verdadeiro conhecimento dá solidez natural à personalidade, enriquece a forma de organizar os pensamentos e entender a vida, molda a pessoa para que ela atraia tudo o que está ao seu redor. Então, deu para entender o que torna uma pessoa interessante? Você já conheceu alguém assim? 

A leitura, entre outros benefícios, pode fazer de nós seres menos intransigentes e conflituosos

Todos nós vivemos nossas vidas e acumulamos em nosso cérebro, em nossas conexões sinápticas, uma série de experiências, boas e más. 

São elas que cruzam o céu de nossas mentes sempre que temos que resolver um problema; sempre que precisamos interpretar um fato da realidade; sempre que estamos diante de um dilema e necessitamos agir. 

Agora, faça o seguinte exercício, imagine que a somatória de todas essas experiências seja simbolizada por uma gaivota, e este pássaro voa solitário no seu vasto céu interior

Imagine também que esta é a única ave que preenche a sua particular vastidão celestial. 

Sendo assim, somente ela servirá de parâmetro para que você possa julgar o mundo e as pessoas que fazem parte da sua vida. 

Ela é a única régua disponível para você medir os fenômenos da realidade; o único instrumento que você leva em consideração para atuar no mundo. Em resumo, seu céu é pobre em gaivotas.

Agora reflita sobre o que aconteceu com meu filho Noa. 

Assim como todos nós, em um dado momento da sua vida Noa tinha somente uma gaivota voando nos céus da sua mente: A gaivota das suas próprias experiências

Porém, ao investir aproximadamente quinze horas da sua vida para ler sobre uma outra vida - no caso a de Eddie Aikau -, Noa iniciou uma interessante viagem imaginária pela história de um outro alguém

Sua imaginação foi estimulada; sua fantasia foi ampliada; ele se colocou no lugar do Eddie; ele teve acesso à maneira como Eddie analisava a vida; ele sentiu as alegrias e as tristezas do lendário surfista havaiano e, neste momento, viu seu céu ser invadido por uma outra gaivota

A partir daí duas gaivotas passaram a voar lado a lado, uma delas chamada Noa, e a outra conhecida como Eddie Aikau. 

Duas perspectivas de vida; dois parâmetros existenciais; dois instrumentos de navegação. O céu do Noa já não era tão pobre.

Ler um livro torna a nossa imaginação muito mais poderosa, pois nos força a criar cenários em nossa mente

Somos impelidos a fechar os olhos e construir uma cena nítida dentro de nossas mentes. Isso força o cérebro a criar novas conexões neurais

Não há nada no mundo mais poderoso do que isso. Ler é algo vertiginosamente superior a assistir a um filme. 

Ao vermos um filme nossa ação é passiva; ao lermos um livro nossa atuação é ativa. Ao assistirmos um vídeo somos coadjuvantes no processo imaginário, que já nos é dado; ao lermos um livro somos os protagonistas da criação do cenário em que a trama se desenrola. 

O processo de amadurecimento de um homem está diretamente associado à quantidade de gaivotas que cruzam o céu da sua mente. 

Um céu mental pobre reflete uma personalidade pobre; um ser anódino e facilmente manipulável; uma mente apequenada, direcionada pelos modismos, pela massa, pela mídia; um indivíduo com um horizonte de consciência pouco dilatado, dominado pelo umbigocentrismo. 

Um céu repleto de pássaros reflete uma personalidade rica em possibilidades; detentora de múltiplos saberes; contaminada positivamente com o benévolo vírus da polimatia. Resumindo: estamos diante de um ser que tem facilidade para conectar saberes.

Porém, é preciso cautela. Todo livro, por melhor que seja, guarda em seu interior a possibilidade da expansão imaginária e, por mais contraditório que isso possa parecer, há também a possibilidade de ser aprisionado por esta mesma expansão

Isso porque todo livro apresenta um céu em particular, o céu do seu autor; e quer este céu seja cruzado por uma ou centenas de milhares de gaivotas, sempre existirá a possibilidade de uma outra ave juntar-se às demais

Eu mesmo, que me considero um homem relativamente privilegiado em termos de número e diversidade de pássaros que navegam pelas minhas conexões sinápticas, fui e sou constantemente vitimado por crenças equivocadas com relação à infinita realidade que nos abarca. 

Episodicamente falta-me alguma gaivota em particular que ampliaria ainda mais o meu horizonte de consciência e me permitiria realizar melhores leituras da complexidade da vida.

No próximo artigo voltaremos às ilhas havaianas, e prometo que ofertarei para você mais algumas gaivotas que lhe permitirão compreender um pouco melhor esta minha estranha tese de uma expansão que pode lhe aprisionar. 

Dr. Marcello Danucalov

Doutor em Ciências (psicobiologia);

Mestre em Farmacologia;

Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.