Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
A história que a partir de agora relato para você originou uma interessante conversa com a minha esposa Natalia e meu filho Noa, e provavelmente também poderá lhe render uma prazerosa conversação familiar que poderá ser útil para você e para seus filhos, caso você os tenha. Tudo começou há aproximadamente cinquenta e cinco anos. Vamos aos fatos.
A década de 1970 foi importante para os poucos nativos polinésios que ainda habitavam as ilhas havaianas.
Foi neste período que teve início aquilo que ficou conhecido como renascimento havaiano, quando algumas pessoas moradoras das ilhas, entre elas um certo número de estrangeiros - conhecidos como haoles -, e alguns poucos nativos remanescentes dos antigos polinésios, iniciaram uma série de ações destinadas ao resgate da agonizante cultura nativa que estava prestes a desaparecer por completo.
Entre os elementos culturais que clamavam por socorro destacavam-se:
Ironicamente, o marco do renascimento foi deflagrado não por um nativo do Havaí, mas por um haole, como nos conta Stuart Holmes Coleman em seu livro Eddie Would Go: A história de Eddie Aikau, herói havaiano.
“O antropólogo haole Dr. Ben Finney [...] era um surfista e velejador ativo bastante conhecido nos círculos acadêmicos e entre as tribos do surfe. Com seu cabelo loiro e pele bronzeada, ele parecia gastar mais tempo no oceano do que na biblioteca. Ele levava um tipo de vida dupla: Quando surfava com os nativos como Eddie, era simplesmente conhecido como Ben, mas quando apresentava os dados sobre sua pesquisa em universidades através do país, era conhecido como Dr. Finney. Suas pesquisas antropológicas sobre a história do surfe e viagens polinésias tinham criado ondas de controvérsias no mundo acadêmico.”
Ben Finney estava interessado em pesquisar como o ser humano atingiu as ilhas havaianas, e uma das teorias mais controvertidas afirmava que há quase mil anos nativos taitianos teriam navegado propositalmente do Taiti ao Havaí, fazendo uso de grandes canoas, sem uso de mapas, compassos, bússolas ou qualquer tipo de instrumentos.
Fizeram isso somente orientando-se pelas estrelas, marés, ondas e migração de animais marinhos e aves.
A única pista de que isso poderia ser verdade eram alguns poemas e cânticos que versavam sobre essa epopeia.
Um desses poemas foi mesclado com a ficção e utilizado pelo renomado escritor estadunidense James Michener em seu monumental romance intitulado Havaí.
“Teroro compôs o canto rude que seria lembrado nas ilhas por muitas gerações depois de sua morte, servindo de orientação para canoas posteriores, que deixaram o Taiti em busca da nova Havaiki:
Espere pelo vento de oeste, espere pelo vento de oeste
Depois navegue para Nuku Hiwa das baías escuras
Para encontrar a estrela constante.
Siga por ela, siga por ela,
Mesmo que os olhos fiquem fracos de calor.
Siga por ela, siga por ela,
Até Ta`aroa enviar os ventos.
Siga depois para as nuvens em que Pere espera.
Contemple as suas chamas, as chamas de Pere,
Até o grande Tane trazer a terra,
Trazer Havaiki-do-Norte,
Dormindo sob os Pequenos Olhos”
Partiu de Ben Finney a ideia de reconstruir uma dessas antigas canoas polinésias e tentar reproduzir essas, até então, improváveis travessias, navegando 4.359 km em mar aberto sem nenhum tipo de apoio instrumental.
Para isso ele se uniu a dois outros amantes do mar e do Havaí, Herb Kawainui Kane, um artista plástico nascido e criado nas ilhas e um dos maiores interessados no movimento de resgate cultural, e Tommy Holmes, um amante do mar e buscador inveterado de aventuras.
Os três amigos deram forma à Sociedade Viajante da Polinésia e depois de alguns anos de estudo e milhares de horas destinadas ao planejamento, construíram uma réplica das antigas canoas polinésias e a batizaram de Hokule’a, nome havaiano da estrela Arcturus.
Mas, o que teve início como um arriscado experimento científico hipotetizado por um doutor em antropologia, logo se tornou uma espécie de baluarte do povo havaiano que enxergou no experimento a possibilidade de solidificar o já citado movimento de renascimento havaiano.
Herb Kane foi um dos que trabalhou muito para fazer da Hokule’a um símbolo cultural:
“É um ícone partilhado de mutualismo, ancestralidade e um lembrete da coragem, inteligência e sofrimento de nossos antepassados”.
Porém, romantismos assim costumam ter vida curta e se estilhaçam com facilidade quando entram em contato com a dura realidade da vida.
A imaturidade de alguns homens pode facilmente colocar em risco o trabalho sério de outros tantos.
Isso foi exatamente o que aconteceu durante a primeira e bem-sucedida travessia realizada em 1976.
Para realizá-la Finney, Kane e Holmes trabalharam arduamente e um dos maiores desafios foi encontrar algum polinésio que ainda dominasse a ancestral arte da navegação sem instrumentos e que estivesse disposto a ensiná-la.
A maioria do antigos mestres já tinha morrido sem passar seu conhecimento às gerações mais novas que, gradativamente, iam perdendo o interesse por tais saberes.
Contudo, ainda restava um bondoso navegador que habitava a Ilha de Satawal, na Micronésia, seu nome, Mau Piailug.
Ele foi o responsável por treinar uma tripulação de jovens havaianos ávidos por participar da aventura e do resgate cultural.
No dia 1° de maio de 1976, sob as orientações de Mau Piailug, um grupo de cientistas haoles, somados a um outro grupo de nativos havaianos partiram do Havaí rumo ao Taiti usando somente o vento, as ondas e as estrelas para navegar.
Foram ao todo trinta e quatro dias de navegação, repletos de tensão e desentendimentos a bordo.
Um pequeno e imaturo grupo de havaianos insistia em se comportar de maneira inapropriada, fumando maconha o tempo todo e ouvindo um irritante radinho de pilha que colocava em risco toda a experiência científica, uma vez que o objetivo era claro: Navegar sem nenhum tipo de tecnologia moderna a bordo.
Em um dos desentendimentos, um desses havaianos agrediu fisicamente o Dr. Ben Finney, vindo a se arrepender logo depois, quando foi severamente criticado pelo mestre Mau Piailug. Coleman retrata assim o descontentamento de Mau:
“Antes de alcançar seu destino no Taiti, Mau disse a Finney que queria ir para casa e não voltaria com o grupo ao Havaí. Ben tentou convencer o sábio e velho desbravador a permanecer, mas Mau tinha decidido sair. A tensão na canoa tinha sido um peso enorme em todos os envolvidos, especialmente em seu fundador. Quando chegaram finalmente ao Taiti, a família de Ben estava lá para cumprimentá-lo, e ficaram chocados com o que viram. Ao fim da viagem, tinha perdido peso consideravelmente e exibia um olho roxo. O haole forte parecia fraco e confuso.”
“[...] na viagem Mau disse que os problemas, quando você faz uma viagem em águas profundas, todos aqueles pequenos problemas com os quais as pessoas nem se importam e que nós podemos sempre superar em terra, todos eles se tornam enormes no mar.”
Agora eu posso retornar ao início deste texto. No último dia 20 de setembro, eu, minha esposa e meu filho estávamos na praia de Maresias, no litoral norte de São Paulo, comemorando o aniversário de vinte anos do Noa.
Caminhávamos pela praia conversando sobre a história acima quando eu perguntei a cada um deles: “Se vocês fossem obrigados a fazer uma viagem como esta; se fossem obrigados a escolher uma tripulação retirando-a do seu círculo de amigos e familiares, quais pessoas estariam a bordo? Em quem vocês confiariam suas vidas em uma jornada como esta, e por quê? Quem ficaria de fora, e por quê?
Cada um de nós passou a justificar a presença ou ausência dos “amigos marinheiros”, e tenho que confessar que demos muitas risadas com as explicações dos motivos do embarque ou do desembarque de muitos deles.
Eu e minha esposa não nos surpreendemos ao constatar que aqueles amigos ou familiares que resolvemos deixar em terra firme, há muito já não “navegavam” conosco na grande travessia da vida.
Um dia fizeram parte da nossa tripulação, mas, por motivos diversos, foram desembarcando nos portos em que atracamos durante a nossa trajetória existencial.
Por outro lado, aqueles com os quais desejaríamos dividir esta arriscada aventura, de uma forma ou de outra estão presentes em nosso cotidiano, navegando e enfrentando conosco as ocasionais turbulências da vida.
Meu jovem filho, ainda não plenamente maduro, se deu conta de que alguns “marinheiros” que ele não gostaria de levar em sua travessia, ainda navegam com ele em seu cotidiano, e isso é totalmente compreensível.
E você caro amigo leitor, quem estaria ao seu lado em sua canoa e quem nem sequer embarcaria? Por quê?
Escolher a tripulação da vida é um tipo de arte e uma das maneiras de aferirmos se o nosso processo de amadurecimento está seguindo seu curso natural.
É preciso ter uma certa dose de coragem para romper vínculos - com amigos e até familiares - , pois é impossível amadurecer e ao mesmo tempo manter todas as amizades de outrora.
Isso não significa que precisamos brigar com as pessoas que fizeram parte de nosso passado, mas o afastamento sereno é, de fato, imperativo.
Todos aqueles que já alcançaram a sétima camada da personalidade sabem que, na medida em que as camadas se expandem, a nossa “canoa interna” tende a se retrair, e em uma canoa pequena geralmente não há espaço para maconheiros amantes de radinhos de pilhas.
Infelizmente, essa turminha imatura tende criar muita tempestade onde, com um pouco mais de sensatez poderia haver águas mais calmas e ventos mais favoráveis.
Agora, convide seus entes queridos para comer uma pizza e durante a refeição pergunte a cada um deles: Quem você levaria na sua canoa?
Dr. Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.