Dr. Marcello Danucalov

Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.

O que torna um livro um clássico?

Um clássico encara a vida como um emaranhado quase infinito de múltiplas causas que geram múltiplos de efeitos. Um clássico nos faz duvidar de que sabemos algo sobre a natureza humana. Um clássico nos ajuda a mapear a nossa própria ignorância.

Dr. Marcello Danucalov

Cresci em Santos, uma linda cidade do litoral do Estado de São Paulo. Desde pequeno minha mãe me levava à praia, e com aproximadamente cinco anos de idade, ganhei dela uma diminuta prancha de isopor e com ela passei a brincar nas pequeninas ondas que acariciavam a escura areia da praia do Gonzaga. De lá para cá, jamais deixei de ter pranchas, e isso já contabiliza cinquenta e dois anos. 

Com o passar do tempo fui adquirindo cada vez mais gosto pelo surfe. Tornei-me surfista profissional e acabei me interessando pela história deste incrível esporte que teve origem há aproximadamente mil e duzentos anos nas remotas ilhas do pacífico sul, e posteriormente, solidificou-se nas ilhas havaianas como uma atividade profundamente ligada à cultura do povo polinésio. 

Como desde sempre tive gosto pela leitura, foi natural tomar contato com alguns livros que relatavam o momento em que as ilhas havaianas foram descobertas pelo homem branco. O capitão britânico James Cook foi o primeiro navegador europeu a entrar em contato com a rica e pitoresca cultura polinésia, quando atracou suas naus Resolution e Discovery na baía de Kealakekua em 1778. A partir deste momento, a história do Havaí e do povo havaiano sofreria uma drástica mudança.

Com relação à história do Havaí, a maioria dos textos lidos por mim vendia uma narrativa semelhante àquela que nos acostumamos a ouvir quando o assunto é a chegada dos portugueses ao Brasil, ou seja, o homem branco europeu foi o responsável por destruir o povo e a cultura nativa, introduzindo doenças; trocando ouro por espelhinhos vagabundos; dizimando as populações nativas; desrespeitando sua religião pagã; usurpando-lhes as terras; privando-lhes da mínima dignidade etc. Qualquer um de nós que tenha tido o desprazer de ter de frequentar as aulas de um professor de história, barbudo, marxista, fedido e maconheiro, sabe bem do que eu estou falando. 

É inegável que, ao ler os primeiros relatos sobre a chegada do homem branco ao Havaí, o meu imaginário tenha sido expandido. Contudo, sempre há o risco de expandirmos a nossa mente de maneira unilateral, o que muitas vezes pode ser pior do que deixa-la em seu estado natural e pouco dilatado. Essa expansão capenga do senso imaginário ocorre sempre que entramos em contato com alguma obra de um historiador ou de um romancista que omite, corrompe ou altera fatos, quer seja por incompetência, ingenuidade ou porque o autor é um manipulador mau-caráter mesmo. 

Lembro-me da primeira vez em que pisei nas ilhas havaianas. Neste momento eu ainda alimentava a ingênua tese defendida pelos desonestos e malcheirosos professores de história e chancelada por uma massa de surfistas com Q.I de mexilhão; massa a qual eu pertencia e era um destacado membro. Eu mesmo cheguei a escrever sobre o povo polinésio, afirmando de maneira demasiadamente sentimental e um tanto quanto abestalhada, que era um povo totalmente pacífico e feliz, e que foi invadido de maneira feroz pelos europeus malvados e mal-intencionados. Hoje, passadas três décadas, é fácil perceber como é possível simplificar abusivamente a complexidade antropológica, sociológica e histórica que envolve episódios como estes, e somente a leitura dos clássicos da literatura pode nos proteger de sermos vitimados por tais crenças infantilizadas.

Mas, o que faz de uma obra um clássico? Um clássico tem o poder de nos retirar de um sono profundo e dogmático. Um clássico oferta a todos nós a possibilidade de nos inserirmos na realidade como ela verdadeiramente é. Um clássico pode tocar a nossa alma delicadamente ou arrombar a porta da nossa consciência com impetuosidade. Um clássico fala às nossas inquietações ancestrais. Um clássico nos oferece narrativas pouco previsíveis. Um clássico transcende o senso comum. Um clássico encara a vida como um emaranhado quase infinito de múltiplas causas que geram múltiplos efeitos. Um clássico é-nos apresentado de maneira poética, retórica, dialética e analítica, oscilando suavemente entre essas quatro possíveis formas de discursos. Um clássico nos faz sorrir, gargalhar; nos faz chorar; nos faz duvidar de que sabemos algo sobre a natureza humana. E por fim, um clássico nos ajuda a mapear a nossa própria ignorância. 

Foi isso que a maravilhosa obra Havaí, do escritor norte-americano James. A, Michener fez comigo. Havaí é um romance épico apresentado em mais de mil páginas e que relata de maneira muito fiel os fatos que nos ajudam a compreender a história desta terra, desde a formação geológica das ilhas até o momento de sua anexação aos Estados Unidos da América no ano de 1959. 

Michener inicia sua obra prima dedicando seu trabalho a todos os povos que foram para o Havaí: Taitianos; descobridores europeus; missionários norte americanos; javaneses; chineses e japoneses, e de forma reverente, concede a cada povo um lugar de destaque em seu monumental livro. A capacidade narrativa de Michener é tão prodigiosa que ele consegue entrelaçar a vida de dezenas de personagens que, mesmo separados por mil anos, concedem a nós uma visão arrebatadoramente clara da complexa teia da vida e das relações humanas, e é isso que esperamos em uma boa literatura. Não há heróis nem tampouco vilões em sua narrativa. Há seres humanos como todos nós, com suas luzes e suas sombras; seus erros e seus acertos; suas certezas e suas dúvidas. 

Como todo bom romance, ao lermos Havaí é impossível não nos afeiçoarmos por algumas de suas personagens, e como já dito em artigos anteriores, afeiçoar-se à elas é como permitir a entrada de mais gaivotas em nosso céu; afeiçoar-se à elas é obter mais instrumentos de navegação existencial; afeiçoar-se à elas é abandonar o umbigocentrismo que restringe nossa inteligência. 

Mas, a sagacidade de Michener adia para o segundo capítulo de sua obra a chegada de novas gaivotas ao nosso céu. Antes disso ele nos leva a um passado bem mais remoto, e nos convida a imaginar como as ilhas havaianas foram geologicamente formadas:

"Por quase 40 milhões de anos, uma extensão de tempo tão vasta que não chega a fazer sentido, apenas o oceano sabia que uma ilha se formava em seu seio, pois nenhuma terra ainda aparecera acima da superfície."

Depois de nos ensinar como o preguiçoso tempo esculpiu as belezas do arquipélago havaiano, Michener abandona as ilhas situadas ao norte do oceano pacífico, e nos guia para o sul do triângulo polinésio, nos anos 800, quando nativos das ilhas Bora Bora e do Taiti já navegavam pelo oceano com uma habilidade jamais vista. Esses povos se aventuraram em travessias oceânicas nunca realizadas anteriormente, e se tornaram os primeiros seres humanos a pisar em solo havaiano:

"Deslizava pela laguna como o que era, uma embarcação de casco duplo de Bora Bora, a mais veloz embarcação que o mundo conhecia na ocasião, capaz de desenvolver uma velocidade de 30 nós em momentos de ímpeto especial, viajando a 10 nós por dias consecutivos, hora após hora, uma embarcação maciça, com 25 metros de comprimento, a popa em camadas, com seis metros de altura, uma plataforma sólida entre os cascos, em que podiam viajar 40 homens ou as estátuas de 40 deuses, com porcos, pandanos e água estocados em segurança.
Somente no norte da Europa é que os vikings demonstravam uma capacidade de empreendimento comparável, embora apenas remotamente, com a dos homens de Bora Bora. Mas mesmo eles ainda não haviam iniciado as suas longas viagens, apesar de contarem com metais, navios grandes, velas de tecido, livros e mapas.
Restavam apenas os homens do Pacífico, homens como o cauteloso Tamatoa e o vigoroso Teroro, para enfrentarem um oceano em seus próprios termos e conquistá-lo. Carecendo de metais e mapas, viajando apenas pelas estrelas, alguns metros de cordas, um pouco de comida e a fé em seus deuses, aqueles homens realizaram milagres. Outros sete séculos transcorreriam antes que um navegador italiano, sob a bandeira da Espanha e contando com todos os recursos de uma comunidade adiantada, iria se aventurar, em três navios bem pregados e confortáveis, a uma viagem não tão grande e apenas pela metade tão perigosa."

É digno de nota que quando entrei em contato com as fabulosas histórias sobre como os polinésios do pacífico sul alcançaram as ilhas havaianas em navegações extremamente desafiadoras, o que me foi contato é que esses homens eram desbravadores corajosos que se lançavam ao oceano ignoto buscando novas aventuras e novas terras. Isso provavelmente pode ser uma parte da história, ainda que os demais motivos por detrás dessas migrações ainda nos sejam totalmente desconhecidos. 

Partindo do que sabemos da antropologia polinésia, Michener amplia o nosso imaginário apresentando uma possibilidade um pouco menos romântica: o descobrimento do Havaí poderia ter sido resultado de uma fuga. Sim, como todas as culturas, a polinésia também apresentava uma sociedade onde o amor e a violência coexistiam; onde a compaixão e o egoísmo se revezavam; e onde a esperança e o temor alternavam-se de maneira previsível e recorrente. Eram comuns os sacrifícios humanos em louvor e glória a determinados deuses, assim como as guerras sangrentas entre os habitantes de diversas ilhas que compõem a polinésia, e é plenamente possível que um grupo de nativos cansados de tanto derramamento de sangue e exaustos do abuso de autoridades sacerdotais e do número crescente de sacrifícios humanos, tenham decidido se arriscar um uma desafiadora e arriscada travessia na esperança de viver dias menos infaustos. 

Contudo, mesmo aqueles que supostamente chegaram no Havaí fugidos do terror, ainda manteriam seus macabros rituais por centenas de anos. Compreender esta realidade já relativiza bastante a crença de que os europeus eram os malvadões e os polinésios um povo bonzinho que só queria saber de surfar, plantar taioba e fazer amor, muito amor:

"Foi com uma exultação especial que os 30 remadores saboreavam os últimos momentos de liberdade que Teroro lhes proporcionava, pois sabiam que, ao cair da noite, empreenderiam uma jornada diferente, solene, sem alegria, com a ameaça constante da morte iminente. Na imaginação, podiam ver o altar em que o sangue estaria. Podiam visualizar os pavorosos porretes de sacrifício. Pior do que tudo, porém, cada homem sabia com certeza que, quando a canoa Espere-pelo-Vento-de Oeste chegasse à praia de Havaiki (Havaí), na manhã seguinte, um dos tripulantes seria escolhido para o sacrifício."

A cada capítulo Michener introduz personagens fascinantes e que nos sensibilizam com suas verdades subjetivas, suas motivações contraditórias e suas dissonâncias cognitivas. Por exemplo, Abner Hale é um jovem missionário calvinista que, em 1818, junto com sua esposa Jerusha Bromley, abandona o conforto do seu lar nos EUA para devotar sua vida ao salvamento das almas pagãs destinadas a arder no fogo do inferno. Abner é um homem amoroso e compassivo, mas também confuso, autoritário, preconceituoso e pouco flexível. Amava os havaianos ao mesmo tempo em que nutria por eles um grande desprezo, como pode ser visto na passagem abaixo:

Os dois missionários ficaram olhando com interesse para a Sra. Hewlett enquanto ela embarcava no navio Thetis.

⎯ Ela está falando com aquele garoto em havaiano? – perguntou Abner.
⎯ E por que não?
⎯ Meus filhos não tem permissão de falarem uma só palavra em havaiano – declarou Abner, enfaticamente. ⎯ A Bíblia nos diz que não devemos aprender os costumes dos pagãos. Seus filhos falam havaiano?
⎯ Claro – respondeu Whipple, com alguma impaciência.
⎯ Mas isso é uma insensatez!
⎯ Vivemos no Havaí. Trabalhamos aqui. Provavelmente os meus filhos estudarão em alguma escola aqui.
⎯ Os meus não. 

Abner e Jerusha chegam ao Havaí depois de uma jornada de meses navegando por oceanos traiçoeiros. Junto a eles viajam outros jovens missionários que terão um comportamento e um destino diametralmente oposto àquele reservado a Abner Hale. Um deles é o jovem John Whipple, que desde o início afeiçoou-se aos havaianos e à sua cultura, abandonando o calvinismo, mas, mantendo sua fé em Cristo. Whipple torna-se um grande empresário no Havaí e um amoroso defensor dos havaianos e de todos os povos que gradativamente desembarcaram em seus portos e que ajudaram a construir a história multicultural e miscigenada do paradisíaco, desafiador e hostil arquipélago. A passagem abaixo retrata o encantamento do jovem Whipple ao entrar em contato com algo até então inédito no ocidente: seres humanos andando sobre as cristas das ondas. É assim que Michener faz sua primeira alusão ao surfe:

[...] os missionários testemunharam pela primeira vez um dos mistérios das ilhas. Homens e mulheres altos, graciosos como deuses, estavam em pé sobre pranchas estreitas, movendo os pés com habilidade e deslocando o ponto de gravidade dos corpos, subindo às cristas das ondas e depois descendo pelas águas com uma velocidade impressionante. E quando a onda morria no coral, o nadador e sua prancha desapareciam nas águas, como se fossem parte do mar havaiano.
⎯ É incrível! – exclamou o Dr. Whipple. ⎯ O impulso cria o equilíbrio.
⎯ Um homem branco poderia fazer isso? – perguntou Amanda.
⎯ Eu vou fazer, assim que chegarmos a Honolulu.

É marcante também o desenrolar da guerra psíquica travada no interior da mente de Keoki Kanakoa, um nobre havaiano que imigrou para os EUA e tornou-se cristão antes mesmo da chegada dos missionários à sua terra natal:

⎯ Quando eu era pequeno - disse Keoki Kanakoa, no excelente inglês que aprendera em diversas escolas religiosas nos Estados Unidos – adorávamos deuses terríveis, como Ku, o deus das batalhas. Ku exigia intermináveis sacrifícios humanos. E como os sacerdotes conseguiam as suas vítimas? Antes de um dia sagrado, meu pai, o Governador de Maui, dizia a seus assistentes: “Precisamos de um homem.” Antes de uma batalha, ele anunciava: “Precisamos de oito homens.” Seus assistentes se reuniam e diziam: “Vamos designar Kakai. Estou brigado com ele.” Ou então: “Seria uma boa oportunidade para nos livrarmos daquele homem e ficarmos com as suas terras.”. À noite, dois conspiradores se aproximavam furtivamente pelas costas, enquanto um terceiro surgia à sua frente e dizia: “Saudações, Kakai. Como foi a pescaria?” E antes que ele pudesse responder...

Ao retornar ao Havaí junto aos missionários, gradativamente Keoki entra em contato com as contradições de alguns cristãos e com as muitas maldades de alguns homens brancos. Confuso, Keoki retorna às suas origens e aos seus deuses, vindo a morrer com grande sofrimento vitimado por uma epidemia de sarampo que devastou boa parte dos havaianos. 

Rafer Hoxworth é um baleeiro hostil e violento que, paradoxalmente é capaz de realizar atos de grande bondade e compaixão.

Noelani é uma linda e jovem havaiana de linhagem nobre que mesmo após presenciar Rafer Hoxworth bombardear a sua vila em Lahaina, posteriormente aceita seu pedido de perdão. Mais do que isso, a nobre Noelani casa com o bruto baleeiro constituindo uma linda e poderosa família que dominaria grande parte do Havaí até sua anexação aos EUA.

Michener também nos ajuda a compreender como nativos iletrados apresentavam habilidades que nenhum ocidental jamais teve. Assim como outros povos - como os indianos, por exemplo -, os havaianos honravam tanto suas tradições que eram capazes de memorizar corretamente seus mitos, seus cânticos, suas histórias e suas genealogias, retrocedendo com acurácia dezenas e dezenas de gerações ancestrais. Este tipo de tradição oral simplesmente não faz parte do nosso imaginário, mas foi e continua sendo uma realidade para muitos povos do mundo: 

"Estava escuro na casa de colmo, com apenas a débil luz do lampião de óleo de baleia, com seu séquito de sombras, quando Kelolo, sentado no chão, de pernas cruzadas, começou:
⎯ Sou Keoki, o filho de Kelolo, que veio para Maui com Kamehameha, o Grande, que era filho de Kanakoa, o Rei de Kona; que era filho de Kanakoa, o Rei de Kona, que navegou para Kauai; que era filho de Kelolo, o Rei de Kona, que morreu no vulcão; que era o filho de Kelolo, o Rei de Kona, que roubou Kekelaalii de Oahu; que era filho de ...
Depois de escutar por algum tempo, a curiosidade de estudioso sobrepondo-se ao tédio inicial da narrativa, um ritual provavelmente imaginário, Abner perguntou:
⎯ Como memorizou essa genealogia?
⎯ Um alii (nobre) que não conhece seus ancestrais não pode ter a esperança de posição no Havaí. Passei três anos memorizando todas as ramificações da minha família. Os reis de Kona descendem do...
⎯ As genealogias são autênticas ou inventadas? – perguntou Abner bruscamente.
Kelolo ficou aturdido com a pergunta.
⎯ Inventadas, Makua Hale? É por elas que vivemos. Por que acha que Malama é a Alii Nui? Porque pode determinar seus ancestrais até a segunda canoa que trouxe nossa família para o Havaí. A ancestral dela era a Sacerdotisa Malama, que veio na segunda canoa. Meu nome remonta à primeira canoa de Bora Bora, pois meu ancestral era o Sumo Sacerdote dessa canoa, Kelolo.
Abner reprimiu um sorriso, enquanto o chefe analfabeto à sua frente tentava estabelecer relações com algum evento mítico que devia ter ocorrido dez séculos antes, se é que ocorrera. Ele pensou em sua própria família, em Marlboro. A mãe sabia quando os ancestrais haviam chegado em Boston, mas ninguém podia recordar quando os Hales haviam chegado lá. E ali estava um homem que não sabia sequer escrever, mas afirmava...
⎯ Diz que pode recordar as canoas em que seu povo veio para cá?
⎯ Claro que posso. Foi a mesma canoa, nas duas viagens.
⎯ E como pode se lembrar disso?
⎯ Nossa família sempre conheceu seu nome. Era a canoa Espere-pelo-Vento-de-Oeste. Tinha Kelolo como navegador, Kanakoa como rei, Pa num remo e Malo no outro. Kupuna era o astrônomo e a mulher de Kelolo, Kelani, estava a bordo. A canoa tinha 24 metros de comprimento pelas suas medidas e a viagem levou 30 dias. Sempre soubemos dessas coisas a respeito da canoa. 
⎯ Está falando de uma pequena canoa como a que se encontra no cais? Quantas pessoas mencionou? Sete? Oito? Numa canoa como aquela?
Abner estava visivelmente desdenhoso.
⎯ Era uma canoa dupla, Makua Hale, e levava não oito, mas 58 pessoas.
Abner estava incrédulo, mas novamente o seu senso histórico foi aguçado. Quis saber mais dos mitos daquele estranho povo. 
⎯ De onde veio a canoa?
⎯ De Bora Bora.
⎯ Ah, sim, já tinha mencionado esse nome antes. Onde fica?
⎯ Perto de Taiti.
⎯ Seu povo veio numa canoa de Taiti... E a história da família termina lá?
Era demais para Abner e ele parou abruptamente de chamar aquilo de história da família. Compreendeu que estava diante de um dos mitos clássicos das ilhas havaianas."

Não! Os havaianos não foram dizimados pelos europeus, assim como os índios brasileiros não foram exterminados pelos portugueses. A vida se constrói em torno de múltiplos laços de interesses e, na esmagadora maioria das vezes, aquilo que chamamos de opressão unilateral nada mais é do que uma relação bilateral pautada na livre escolha das partes envolvidas, ainda que existam exceções que todos nós conhecemos. 

Para os índios brasileiros, um pequeno espelho era um item de valor inestimável, e por livre e espontânea vontade ele oferecia suas riquezas para o possuir. Para qualquer ser humano que preserve alguns neurônios é fácil compreender que o valor de um copo com água depende muito da dimensão da sede. Dito isso, é necessário lembrar de uma obviedade: Existe índio bom e aborígine canalha; havaiano pacífico e polinésio violento; branco protetor e europeu bandido; monarca havaiano bonzinho e rei polinésio corrupto; português safado e lusitano santificado; pasteleiro honesto e chinês pilantra; japonês honrado e samurai babaca; negro oprimido e afrodescendente opressor; capitalista mal-intencionado e empresário benevolente. Mas, qualquer simples pesquisa no Google nos levará a textos ressentidos e infantilizados, como este de Danny Shaw. O início da fanfarrice apela para o velho papo furado daqueles que vestem camisas com a estampa de Che Guevara enquanto escrevem seus artigos em iPhones de última geração:

"A história moderna do Havaí é uma história de resistência anticolonial e luta de classes. Entender como essa luta nacional se desenrolou explica quais forças de classe tomaram as rédeas do estado havaiano e cujos interesses de classe o Estado protegeu. Um exame da profunda opressão nacional que o povo havaiano sofreu nas mãos do imperialismo dos EUA revela as raízes dos males sociais modernos do Havaí e da resistência que surgiu para reivindicar o Havaí."

Depois o autor exagera nas evidências e afirma que o Havaí foi habitado há 4.000 anos, o que é um erro crasso: 

"O roubo de um reino
O Havaí consiste em oito “ilhas principais” que são, de noroeste a sudeste, Ni’ihau, Kaua’i, Oʻahu, Moloka’i, Lāna’i, Kaho’olawe, Maui e Hawai’i. Há evidências antropológicas de que os ancestrais do povo havaiano passaram a habitar o Havaí há cerca de 4.000 anos (Sykes). No entanto, para o povo havaiano, os últimos 200 anos de história foram um longo despejo de sua nação insular pelas forças coloniais e neocoloniais."

Logo em seguida, e como já é costume dessa turminha lacradora, o pobre James Cook também é demonizado e as informações concedidas são bastante equivocadas. Os havaianos não lutaram para defender as suas terras e Cook foi morto por outros motivos:

"O ano de 1778 marcou a chegada do capitão britânico James Cook, o primeiro colonizador a tentar explorar e tirar proveito do Havaí. Os havaianos defenderam as ilhas contra Cook, acabando por matá-lo por sua agressão contra sua nação. No entanto, a invasão britânica deu início à chegada de um ataque violento de missionários e saqueadores que começaram a reivindicar a ilha do Pacífico. Seu objetivo era extirpar o sistema econômico e cultural nativo e substituí-lo por um projeto social diferente baseado em uma religião estrangeira e na supremacia da propriedade privada acima de tudo."

Como não poderia deixar de ser, Danny Shaw, socialista caricato, dispara sua metralhadora contra a religião e contra todos os missionários malvadões:

"Centenas de missionários chegaram convencidos de que deviam converter ao Cristianismo o que eles chamaram de povo 'desregrado, indolente, imprudente e ignorante'. Mas, por trás do manto desses chamados motivos 'humanitários', estava um interesse em reivindicar as vastas riquezas do Havaí. Muitos dos principais capitalistas que formaram a inicial classe dominante colonial chegaram como missionários ou eram filhos de missionários. A igreja e as grandes empresas trabalhavam lado a lado e eram, em essência, uma coisa só. Nas palavras de Desmond Tutu, ao descrever a própria experiência do povo sul-africano com a conquista europeia: 'o colonizador chegou com uma arma em uma das mãos e uma bíblia na outra'”.

As intenções de Cook provavelmente eram bastante diferentes do que se propaga em texto tão panfletários como o de Danny Shaw, e isso é tão verdade que quando analisamos os diários de bordo do capitão Cook nos deparamos com uma preocupação que não faz parte da mente dos românticos mal-intencionados que preferem crer no ringue histórico e na simplificada luta entre o bem e o mal. É comum lermos que a população havaiana foi quase inteiramente dizimada pelas doenças introduzidas pelos europeus e americanos tais como o sarampo, a gonorreia e, posteriormente, a lepra. Isso é verdade. Porém, o contágio e as epidemias jamais foram intencionais. Contrariamente e sem sombra de dúvidas, teve uma colaboração também não intencional do “fogo” das havaianinhas. No livro Ilhas de História, Marshall Sablins divide conosco as compassivas preocupações do capitão Cook ao atracar pela primeira vez no Havaí:

"7 de dezembro de 1778. Os navios Resolution e Discovery balançavam-se contra o vento da costa norte da ilha do Hawai’i. Foi neste dia que o capitão Cook finalmente cedeu dando às mulheres havaianas o direito de serem amadas, direito que elas vinham exigindo desde janeiro do mesmo ano, quando os britânicos ancoraram pela primeira vez em Kaua’i, descobrindo assim as ilhas Sandwich para o mundo ocidental. Em Kaua’i Cook dera ordens proibindo relações sexuais com as mulheres do lugar, temendo a introdução do 'Mal Venéreo'. No entanto, as mesmas páginas do diário que registram essas ordens transmitem a sensação de sua inutilidade. O comportamento das havaianas era ainda mais escandaloso do que o das mulheres de Tonga, onde medidas semelhantes já haviam fracassado. O convite implícito em seus gestos eróticos era 'inconfundível', como relatam os cronistas da viagem, e quando repelidas elas 'nos insultavam mui sinceramente'. 
[...] David Samwell – galês, assistente do médico e poeta menor – achou que 'as jovens...em geral, são extremamente belas'. Elas 'usavam de todos os artifícios', diz ele, 'para atrair nossos marinheiros para dentro de suas casas, e vendo que [os marinheiro] não cederiam a suas lisonjas, procuravam força-los, e eram tão inconvenientes que se recusavam totalmente a aceitar qualquer negativa'
[...] Os homens (havaianos) traziam suas irmãs, filhas e, possivelmente, até mesmo suas mulheres para os navios. Poderíamos chamar isto de hospitalidade, ou de hipergamia espiritual."

Michener teve acesso a inúmeros documentos históricos para compor seu romance, e muito provavelmente, também aos diários de bordo de James Cook. Com uma habilidade rara mesclou fatos com ficção e nos presenteou com um romance infinitamente mais útil do que muitas aulas universitárias que destilam pseudoverdades com vistas a defender cegamente suas ideologias desgastadas. 

Seduzir nossos filhos a ler uma obra como esta é quase uma garantia de sucesso na educação deles, e é também um verdadeiro antídoto contra as imbecilizações perpetradas por docentes debilóides, que creem que a vida é uma perpétua luta entre oprimidos e opressores, sendo que os mocinhos oprimidos são sempre as minorias: os indígenas; os negros; as mulheres; a turma lgbtqiapn+asdfg@çlkjh; ou, neste caso, o povo polinésio. Em contrapartida, os brancos são sempre os opressores. 

Se você está farto de tanta bobagem e ainda não é um leitor dos grandes clássicos, convido-o a repensar suas prioridades, assim como os lugares onde você tem buscado ampliar seu conhecimento.

E boa viagem.

Dr. Marcello Danucalov

Doutor em Ciências (psicobiologia);

Mestre em Farmacologia;

Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.