João Henrique

Cientista político, com mais de 24 anos de experiência na formulação e gestão de políticas de controle do crime e da economia ilícita, para o setor público e privado, no Brasil e no exterior.

OPINIÂO

O primeiro pilar da reconstrução do RS

Segurança é um jogo de soma zero. Se a capacidade de imposição da lei for restituída, um ciclo virtuoso poderá florescer e reconstruir o Rio Grande; se falharmos nessa recuperação, um ciclo vicioso pode comprometer a reconstrução do estado.

João Henrique

O desastre natural que acometeu o Rio Grande do Sul resultou em centenas de vítimas fatais, milhares de animais sacrificados e prejuízos materiais de bilhões de reais, além da destruição de boa parte da infraestrutura das cidades atingidas. São situações como essa que revelam, sem filtros, o que a natureza humana tem de melhor e pior.

Os noticiários e as redes sociais estão repletos de emocionantes casos de resgate. Apesar do instinto natural de autopreservação e sobrevivência, as pessoas arriscam a vida para proteger aqueles que amam (filhos, pais, irmãos e animais de estimação). 

Com os familiares seguros, arriscam-se em prol de membros da sua comunidade (amigos e vizinhos) e, depois, na condição de "voluntários socorristas", por qualquer um que esteja na mesma situação.

É o ciclo virtuoso da experiência humana. Aquilo que Adam Smith descreveu em "A Teoria dos Sentimentos Morais" (1759) sobre a capacidade humana de sentir simpatia e, com ela, formar e unir a sociedade

"Por mais egoísta que o homem possa ser, há evidentemente alguns princípios em sua natureza que o interessam na fortuna dos outros e tornam a sua felicidade necessária para ele, embora ele não derive nada disso, exceto o prazer de vê-la".

Mesmo Thomas Hobbes, sempre lembrado pela visão um tanto pessimista da natureza humana, reconheceu em "Leviatã" (1651) que, através da razão positiva em um contrato social, os humanos poderiam reconhecer os benefícios da cooperação e do acordo mútuo para garantir sua sobrevivência e bem-estar.

Mas não nos enganemos. A natureza humana também produz um ciclo vicioso, que aflora mais nitidamente nesses momentos, com o momentâneo colapso do sistema de justiça criminal (formado pelas polícias, Ministério Público, Judiciário, sistema prisional e pela lei penal).

Saques em casas e comércios, desvio de doações, ataques e roubos de barcos de socorristas e, principalmente, os estupros em abrigos evidenciam a natureza vil de alguns, que sempre se manifestará quando perceberem que a chance de serem punidos é quase zero (o, chamado, "baixo custo do crime").

Os noticiários também mostram a resposta a essa ameaça: sobreviventes ilhados estão "entrincheirados" no piso superior de suas casas, mesmo sob risco de novas e maiores inundações. Eles tentam evitar que criminosos invadam suas casas para roubar comida e bens, ou, o que é muito pior, violentar as mulheres da família.

Se as famílias precisam ficar constantemente em "fuga ou luta" para manter-se em segurança, não é possível despender tempo e atenção para atender às outras necessidades (alimento, abrigo melhor, saúde, educação, etc.). Logo, a vida se torna inviável.

Esse quadro é a exata descrição do "estado de natureza" de Hobbes, onde o colapso da autoridade central para impor regras e leis resulta na anarquia que produz uma vida "solitária, pobre, desagradável, brutal e curta", levando-nos ao estado de "guerra de todos contra todos". Apesar de escrito em 1651, é uma descrição de regiões do Rio Grande do Sul de 2024.

Assim, se a capacidade de imposição da lei for restituída, um ciclo virtuoso poderá florescer para reconstruir o Rio Grande. Se falharmos, as famílias continuarão em processo de vitimização e o ciclo vicioso pode comprometer a reconstrução do estado.

Criminosos estarão incentivados a continuar a agir contra as famílias e os recursos da reconstrução, sejam doações ou investimentos emergenciais. Segurança é um jogo de soma zero.

Este princípio é utilizado pelas Nações Unidas quando atuam em auxílio a países destruídos por conflitos ou desastres. Operações de imposição da lei (Peace enforcement), até que as instituições de justiça criminal recuperem a capacidade de fazê-lo sozinhas e viabilizem condições mínimas para receber operações de reconstrução (Peacebuilding). 

Portanto, o primeiro pilar da reconstrução do Rio Grande do Sul deve ser a restituição da capacidade do seu sistema de justiça criminal em impor a lei. Começando pela recuperação da capacidade operacional da Brigada Militar (a PM gaúcha) e da Polícia Civil, com um plano para reforço de pessoal e equipamentos, pelo menos durante o período especial.