Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
O ser humano tem vagado pelo planeta Terra há aproximadamente duzentos mil anos, e a psicologia moderna - que se orgulha de ser científica -, conta menos de cento e cinquenta anos desde seu nascimento.
É pouco provável que neste gigantesco período que antecedeu o surgimento da psicologia científica, o homem não tenha produzido nada de útil em termos de compreensão da sua psique.
Duzentos mil anos deve ser um tempo suficiente para a nossa espécie acumular algum tipo de saber oriundo da experiência cotidiana.
Não quero com isso desmerecer a ciência, eu mesmo tenho um PhD em ciências e confesso que muito aprendi com seus métodos.
Todavia, crer cegamente nesta área do saber há muito já se provou ser uma atitude demasiadamente ingênua e infantilizada.
Só quem desconhece os estudos da filosofia da ciência – área que investiga a solidez das pretensões científicas - continua enaltecendo-a de maneira fundamentalista.
A ciência é uma instituição humana e, como todas as demais, apresenta idas e vindas, acertos e erros, heróis e vilões durante toda a sua história.
Para quem me acompanha por aqui deve lembrar de algumas considerações feitas por mim com relação à aderência um tanto quanto afoita de algumas pessoas aos pressupostos da psicologia e psicopedagogia modernas.
Como dito em recente artigo sobre a subversão da obediência, muitas “descobertas” da psicologia moderna já tinham sido realizadas por filósofos da antiguidade, da idade média e do início da idade moderna.
É verdade também que algumas dessas “descobertas” ainda não foram testadas pelo tempo e podem, ao contrário do que se costuma afirmar, ser muito mais venenosas do que terapêuticas para nós.
Para provar a primeira afirmação, ou seja, a da redescoberta da roda, vou apresentar a você algumas ideias do filósofo Spinoza. Mas, antes disso, é necessário uma pequena consideração.
Atuando como filósofo clínico integral e como especialista em comportamento humano há mais de trinta anos, pude perceber uma obviedade: ainda que você não tenha muita afinidade com um determinado pensador, e ainda que você discorde de algumas de suas premissas, nem por isso você precisa discordar de todas as suas ideias e conclusões.
Para mim, o filósofo Spinoza é um bom exemplo disso. Sou cristão e ele é um panteísta, logo, partimos de princípios radicalmente diferentes.
Mas, apesar disso, suas ideias sobre as paixões humanas - incluindo aqui as emoções -, são muito atraentes e chamaram a atenção de grandes neurocientistas, como Antônio Damásio. Dito isso, vamos compreender um pouco mais sobre este pensador.
Spinoza (1632 – 1677) é um homem que viveu no século XVII. Sua vida foi breve e suas contribuições para o pensamento humano foram grandiosas, apesar de ter vivido somente quarenta e cinco anos.
Spinoza passou praticamente toda a sua vida na cidade de Amsterdã, na Holanda. Nascido no seio de uma família de judeus religiosos que foram expulsos de Portugal pela inquisição, Spinoza teve uma sólida formação teológica estabelecida no judaísmo.
Logo, pode-se afirmar que era um profundo conhecedor do velho testamento, ainda que tenha se tornado célebre pelo fato de seu pensamento se afastar sobremaneira do típico pensamento monoteísta religioso encontrado no judaísmo, no cristianismo e no islamismo.
Suas ideias são fundadas no materialismo; sua filosofia contradiz sua formação teológica; e sua vida nega as expectativas que sua comunidade lhe outorgou.
É fácil perceber que, muito além das escrituras religiosas, Spinoza teve contato com outros pensadores que o levaram a ter ideias contrárias à sua formação judaica.
Dentre os temas pelos quais Spinoza nutriu interesse durante sua curta vida, pode-se destacar: matemática, mecânica, gramática, hermenêutica, literatura clássica, história, literatura política e literatura espanhola.
Os autores que constavam de sua biblioteca particular na época de sua morte eram: Cícero, Virgílio, Sêneca, Plínio, Júlio César, Ovídio, Aristóteles, Tácito e principalmente Hobbes e Descartes.
Como todo gênio, Spinoza soube reorganizar de forma bastante criativa e original uma enorme variedade de pensamentos que estavam à sua disposição na época em que viveu, e com isso criou uma das mais interessantes propostas filosóficas da modernidade.
Um homem verdadeiramente fora de seu tempo que, apesar de ser dotado de grande cultura e lucidez, ganhou a vida exercendo um trabalho muito simples: polidor de lentes para telescópios.
Desta forma, ajudou muitas pessoas a enxergar com mais clareza os mistérios do universo.
Coincidentemente, sua filosofia também permitiu a alguns de nós investigar e compreender melhor nosso universo interior.
Um homem que mergulhou no interior do Ser em busca da compreensão dos afetos, foi também alguém que ajudava pessoas a olhar para as estrelas.
Spinoza escreveu sobre muitos temas, mas sua principal e mais conhecida obra é Ética à maneira dos geômetras.
Nela, Spinoza propõe algumas condutas para o homem viver melhor, como adquirir gradativamente maiores graus de liberdade em sua vida por meio do desenvolvimento de estratégias que o permitam gerir melhor suas paixões, seus afetos.
A escrita de Spinoza é lógica, analítica, densa. A compreensão dos detalhes de seu pensamento demanda tempo e requer um certo trabalho.
Porém, mesmo sabendo que os trechos abaixo foram retirados das partes finais do livro Ética à maneira dos geômetras, e mesmo intuindo que alguns termos serão de difícil compreensão devido a falta de trechos explicativos oferecidos por Spinoza em capítulos preliminares, peço a você leitor que siga adiante na leitura, pois, mesmo envolto em certa obscuridade, tenho certeza que você compreenderá a essência do que quero demonstrar.
Segundo Spinoza, somente Deus é completamente livre. Somos servos de nossas paixões - emoções -, entretanto, é-nos possível conquistar alguns graus de liberdade.
Spinoza descreve várias maneiras em que a competência cognitiva de nossa mente capacita-nos a alcançar o conhecimento adequado para obtermos certa liberdade sobre nossas paixões, (Ética, parte 5, demonstração 20, escólio).
A primeira maneira de se chegar a uma liberdade parcial está atrelada ao próprio conhecimento dos afetos.
A paixão é uma ideia confusa de um estado corporal. Quando passamos a prestar atenção a ela, nossa percepção se torna mais clara e adequada.
Gradativamente, vamos nos tornando mais ativos e menos passivos. Percebemos o que a paixão faz conosco.
Investigamos suas causas, suas possíveis origens, e, para usar um termo atual advindo da psicologia, seus gatilhos.
Por conseguinte, o afeto decorrente vai perdendo sua força até cessar de ser uma paixão (Ética, parte 5, proposição 3).
A razão, ainda que não possa impedir um afeto de se instalar, pode ser capaz de analisá-lo com cautela (Ética, parte 5, prefácio).
A razão é como um médico, que não podendo impedir totalmente a contaminação de uma pessoa por uma bactéria, ainda assim pode ministrar antibióticos para destruí-la.
Ao entender as paixões como estados corporais particulares, recebemos como bônus alguma capacidade de modulá-las pelo conhecimento de sua natureza.
A segunda maneira de se chegar a uma liberdade parcial diz respeito à habilidade que a mente - razão - pode desenvolver para conseguir separar os afetos do pensamento.
Em muitas ocasiões, o pensamento que temos a respeito da suposta causa exterior originária do afeto em questão, não corresponde à realidade. O ódio passional, por exemplo, é uma forma de tristeza.
Quando mediado pela razão, a intensidade da paixão sentida para com o objeto do ódio pode arrefecer (Ética, parte 5, proposição 3).
Por exemplo, se compreendemos que uma pessoa que nos tenha causado mal o fez por ter sido dominada por suas paixões e pela concomitante falta de potência, o ódio passional tenderá a diminuir até o ponto de não mais constituir ódio, e transmutar-se, talvez, em uma simples tristeza corriqueira.
Spinoza acredita que ao separarmos um afeto da ideia de sua causa podemos ao menos evitar que a ideia do objeto odiado seja rememorada, restaurando assim o afeto pernicioso (Ética, parte 4, proposição 15).
Uma terceira forma é dependente do tempo necessário para que possamos aumentar o grau de atividade dos afetos que referentes às coisas que compreendemos, para que esses possam superar as paixões que pelas coisas que concebemos de forma automática e pouco atenta.
Os afetos - emoções, sentimentos - originários da razão, procedem de uma compreensão adequada das propriedades comuns das coisas, e sendo afetos gerados na razão são, por conseguinte, mais constantes e duráveis.
Portanto, todos os afetos antagônicos perderão força gradativamente e tenderão à destruição ou à acomodação aos afetos mais potentes.
A quarta maneira de se chegar a uma liberdade parcial é relativa à multiplicidade de causas dos afetos oriundos da razão.
Um afeto é mais forte quando mais coisas o causam (Ética, parte 5, proposição 9). Além disso, quanto mais coisas o causarem, mais frequentemente ele será produzido (Ética, parte 5, proposição 11).
Logo, se os afetos que resultam da razão estão relacionados com as propriedades comuns de todas as coisas, eles são produzidos por um número maior de coisas.
O quinto modo está relacionado ao ordenamento com que a mente é capaz de encadear e conectar os afetos e suas causas.
Quando a mente não se encontra sobre o fogo cruzado de afetos que se somam, se opõe e se anulam em uma dança caótica, ela tem maiores chances de compreender a si própria. Deste aprendizado é possível formar suas propostas de condução de vida.
A razão pode associar na imaginação essas propostas de conduta com as circunstâncias comuns da vida às quais podem ser aplicadas, de modo que propostas, compreensões éticas e desejos ativos possam ser evocados pela mente quando forem necessários.
Spinoza ainda nos propõe outras maneiras de gerirmos nossas paixões, mas, por ora, paremos por aqui.
A filosofia de Spinoza também é encontrada imbuída na psicologia contemporânea e nas neurociências, muito embora, a maioria dos psicólogos e neurocientistas desconheçam esta aproximação.
O texto abaixo foi retirado da orelha de um livro que se tornou um best seller na década de noventa e até hoje reverbera nas mais diversas áreas do conhecimento humano, Inteligência Emocional, de Daniel Goleman.
Publicado pela primeira vez em 1995, nos Estados Unidos, este livro transformou a maneira de pensar a inteligência. Alterou práticas de educação e mudou o rumo dos negócios. Das fronteiras da psicologia e da neurociência, Daniel Goleman trouxe o conceito de “duas mentes” – a racional e a emocional – e explicou como, juntas, elas moldam nosso destino.
Segundo Goleman, a consciência das emoções é fator essencial para o desenvolvimento da inteligência do indivíduo. Partindo de casos cotidianos, o autor mostra como a incapacidade de lidar com as próprias emoções pode minar a experiência escolar, acabar com carreiras promissoras e destruir vidas. O fracasso e a vitória não são determinados por algum tipo de loteria genética: muitos dos circuitos cerebrais da mente humana são maleáveis e podem ser trabalhados; portanto, temperamento não é destino. Utilizando exemplos marcantes, Goleman descreve cinco habilidades-chave da inteligência emocional e mostra como elas determinam nosso êxito nos relacionamentos e no trabalho, e até nosso bem-estar físico. Pais, professores e líderes do mundo dos negócios sentirão o valor desta visão arrebatadora do potencial humano.
Polêmico, inovador, provocador – Inteligência Emocional é um grito de alerta aos que ainda pensam que a razão é a única responsável pelo caminho da vida.
Na contracapa do livro encontramos as seguintes declarações:
Uma ideia revolucionária, capaz de desconstruir paradigmas – não só faz o debate avançar, como o transforma para sempre. Harvard Business Review
Quem se interessa por liderança deve arranjar um exemplar deste livro. The New York Times
Eis aqui os cinco domínios “revolucionários” de Daniel Goleman:
Para isso é necessário autoconsciência para reconhecer um sentimento no momento de sua ocorrência, pois caso isso não ocorra, ficaremos à mercê deles e seremos menos donos de nossa vida.
A autoconsciência permite que desenvolvamos a capacidade de lidar com os sentimentos para que sejam mais apropriados.
Pôr as emoções a serviço de uma meta é essencial para centrar a atenção. Isso facilita o gerenciamento das emoções, pois pode, por exemplo, ajudar-nos a conter a impulsividade e adiar a satisfação.
A empatia é outra capacidade emocional advinda do desenvolvimento da autoconsciência. Indivíduos empáticos têm maior sintonia com os sutis sinais emocionais que são expressos pelas outras pessoas. Isso faz com que percebam com maior clareza as necessidades do outro, facilitando a comunicação.
A boa capacidade de se relacionar é, em grande medida, a aptidão de lidar com as emoções dos outros. São aptidões que determinam a popularidade, a liderança e a eficiência interpessoal.
Paul Ekman é professor de psicologia no departamento de psiquiatria da University of California Medical School, em São Francisco e é outro grande pesquisador.
Ekman publicou um livro muito esclarecedor sobre a linguagem das emoções, onde explica como elas se manifestam em nossa face, mesmo que não estejamos conscientes disso.
São as microexpressões faciais, queiramos ou não, aos olhos de um especialista desnudam nossos sentimentos mais profundos.
Ekman é reconhecidamente um dos maiores especialistas neste assunto, e em seu livro A linguagem das emoções também faz afirmações que julgo pertinente reproduzir aqui:
Meu objetivo foi ajudar as pessoas a aperfeiçoarem quatro habilidades básicas [...]. Essas habilidades são:
Assim como Goleman, Paul Ekman apresenta uma grande quantidade de pesquisas realizadas nos últimos quarenta e cinco anos nas áreas da psicologia e da neurobiologia.
Também propõe exercícios e nos faz pensar em coisas intrigantes, como por exemplo, as contidas nas passagens abaixo:
Você se enfezaria se sua filha de dezesseis anos voltasse para a casa duas horas depois do horário combinado? O que despertaria a sua irritação: o medo que você sentiu cada vez que consultou o relógio ou o sono que você perdeu esperando a volta dela?
Para reduzir os episódios emocionais destrutivos e aprimorar os construtivos, precisamos saber a história de cada emoção, o que é cada uma. Ao aprender os gatilhos específicos, aqueles que compartilhamos com outros e aqueles que são exclusivamente nossos, seremos capazes de diminuir seus impactos ou, no mínimo, de entender o poder de alguns dos gatilhos que resistem a qualquer tentativa de diminuir seu controle sobre nossas vidas.
É difícil subestimar a importância das emoções em nossas vidas. Meu mentor, o saudoso Silvan Tomkins, afirmava que as emoções são o que motiva nossas vidas. Organizamos nossas vidas para maximizar a experiência das emoções positivas e minimizar a das negativas.
Convido-o agora a meditar sobre algumas questões. A primeira delas diz respeito ao colossal alcance que os trabalhos desses dois psicólogos tiveram nos últimos anos.
É inegável que ambos colaboraram com a divulgação deste tema, lançando luz sobre um assunto polêmico e disseminando este conhecimento para as áreas da educação, psicologia, administração etc.
Todavia, compare as propostas de Spinoza, Goleman e Ekman. Qual conclusão é possível chegar?
Não é errado afirmar que parte das “novidades” propostas por Goleman e Ekman já tinham sido enunciadas há quatrocentos anos por Spinoza!
Não há quase nenhuma novidade no que diz respeito às ideias apresentadas como revolucionárias.
Isso mostra a genialidade de Spinoza, que por meio de sua sofisticada reflexão filosófica propôs algo que a ciência psicológica crê ter descoberto recentemente.
Goleman e Ekman não citam Spinoza em suas referências bibliográficas. Provavelmente não o fizeram por desconhecer totalmente seu pensamento.
Em muitas ocasiões os cientistas ficam tão absortos em suas especialidades que se tornam cegos às mais evidentes obviedades e se orgulham das suas “recentes” descobertas sobre como fazer fogo usando pedacinhos de gravetos.
Psicólogos costumam ler e estudar psicologia. Contudo, alguns filósofos, geralmente os polímatas, costumam ler e estudar quase tudo, inclusive as recentes “descobertas” da psicologia contemporânea.
Sendo assim, sempre que você encontrar algum influenciador muito orgulhoso de seu saber altamente atualizado no que tange ao comportamento humano, lembre-se de duas coisas muito importantes: Os filósofos vêm se debruçando sobre as questões humanas há milhares de anos, e muitas das ideias propostas por eles continuam vivas, aplicáveis e atuais, ainda que muitos “inteligentinhos” as julguem ultrapassadas.
E a velhice do mundo é uma forte aliada para nos proteger da patética crença de que grandes descobertas na área da psicologia, da moral e da ética possam ocorrer diariamente.
É preciso ficar atento e conhecer as bases fundantes das ideias que são gestadas e propagadas na atualidade.
Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.