Cientista político, com mais de 24 anos de experiência na formulação e gestão de políticas de controle do crime e da economia ilícita, para o setor público e privado, no Brasil e no exterior.
No último artigo, abordei a questão da distribuição de responsabilidades e competências entre os governos federal, estadual e municipal em relação à segurança pública.
Agora, escrevo sobre o papel do governo federal na segurança pública, motivado pelas notícias da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que o ministro da Justiça pretende enviar para o Congresso Nacional para aumentar as competências das polícias federais (PF e PRF) e do próprio Ministério na gestão da segurança pública nos estados.
Segundo o ministro, a justificativa para a PEC seria:
"Segurança pública deixou de ser um problema local para tornar-se uma questão nacional, considerada a criminalidade organizada, cuja atuação transcende as fronteiras estaduais e até mesmo as do próprio país" (Ministro Ricardo Lewandowski, Conjur, 30.06.24).
Concordo com as premissas do problema, mas não com a solução proposta. Ela tem dois equívocos: (i) o governo federal já possui plena competência para atuar nessa matéria, (ii) e seu desempenho é muito ruim.
O governo federal já é o responsável pelas políticas de controle do crime com repercussão interestadual/internacional em 16,7% do território nacional.
Trata-se dos 150 km de largura ao longo da fronteira, que somados possuem 1.420 milhãoes de km², onde vivem 11 milhões de pessoas em 588 municípios.
Se fosse um estado, seria o 2º maior do país (Amazonas possui 1.560 milhãoes de km²).
Para cumprir essa missão, a Constituição Federal atribuiu ao governo federal o controle de polícia judiciária (investigativa) e ostensivas (administrativas), através da Polícia Federal e de órgãos federais com competência de polícia administrativa (ostensiva e fiscalizatória), como a Receita Federal, o IBAMA e a PRF.
Por essa estratégica parte do território nacional, entram toda a cocaína, armas ilegais, contrabando de cigarros e eletrônicos consumidos nos grandes centros, e saem parte do dinheiro do varejo do tráfico e de produtos roubados também nos grandes centros.
Com isso, o Brasil se consolidou, nas últimas décadas, como 2º maior consumidor de cocaína do planeta e grande exportador para a Europa, África e Ásia (apesar de não plantar coca).
Possui um gigantesco mercado de contrabando e falsificados. Não por acaso, as facções criminais brasileiras se internacionalizaram como "operadores logísticos do crime".
Portanto, o desempenho do atual governo federal e de todos os anteriores, na governança dessa parte do território, não autoriza o pleito por mais prerrogativas ou competência na segurança pública.
Não é a falta de atribuições ou estrutura policial que falta ao governo federal. O que falta é política pública focada em controlar o problema do crime transnacional nas fronteiras.
Quando houver decisão política neste sentido, haverá muito o que fazer dentro das atuais atribuições e observando o modelo que alguns estados criaram.
Cansados de esperar uma política estrutural por parte do governo federal, estados como Mato Grosso do Sul e Paraná, construíram há décadas soluções locais muito efetivas.
Respectivamente, o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) da SEJUS/MS e o Batalhão de Polícia de Fronteira da Polícia Militar do Paraná (BPFRON), que hoje são a primeira linha de defesa do país contra as redes criminais transnacionais.
Em situações como essa, sistemas cooperativos não hierarquizados funcionam muito bem em modelos federativos: meios estaduais, financiamento e suporte federal.
Seria possível criar um "sistema de proteção de fronteiras" em que o governo federal desse suporte financeiro, jurídico e informacional contínuo, a políticas estaduais de sucesso. Fazendo-as ganhar escala e serem reproduzidas em outros estados.
Isso funcionaria como política nacional de segurança pública. Mas a PEC proposta, em vez de ampliar a cooperação neste sentido, vai na direção oposta e cria uma subordinação dos estados ao Ministério da Justiça.
O avanço sobre as prerrogativas dos governadores, principalmente para utilizar as polícias civil e militar na implementação das políticas federais, relega as políticas de segurança estaduais (aprovadas nas urnas) a meras ações complementares do governo federal.
Na prática, no caso da fronteira, o governo federal passaria a controlar o DOF e o BPFRON, emitindo "diretrizes de atuação".
Ou seja, em vez de apoiar quem assumiu a responsabilidade que era sua, agora o governo federal quer, na prática, controlar a solução criada. Mas, sem assumir o custo financeiro e político das decisões.
Do ponto de vista do interesse público, da lógica do modelo federativo e da literatura de política pública, não faz o menor sentido.