Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
Quem é apreciador dos conteúdos da Brasil Paralelo já deve ter se deparado com um assunto recorrente e de grande importância: A expansão do nosso imaginário.
A imaginação é um dos atributos que nos diferencia dos outros animais, e por meio dela, o ser humano subjugou a natureza, desenvolveu inúmeras tecnologias e ousou refletir sobre sua própria origem, seu lugar no cosmos e até mesmo seu destino transcendente.
Voltarei a este assunto mais abaixo. Por enquanto quero propor para você a realização de um exercício.
Há mais de vinte anos tenho feito uso de uma dinâmica esclarecedora de como automatismos conversacionais podem ser perniciosos e afetar negativamente nossos vínculos interpessoais, quer sejam com nossos familiares, amigos, alunos, colegas ou funcionários no ambiente de trabalho.
Já apliquei este exercício em diversos contextos: coorporativo, esportivo, acadêmico, e até mesmo em processos clínicos de orientação filosófica para famílias.
Depois de todas essas experiências, posso afirmar que o resultado, em noventa e cinco por cento das vezes é sempre o mesmo.
Vou tentar reproduzir este exercício aqui, mas precisarei da sua colaboração.
Para isso vou precisar que você siga algumas orientações:
Era uma vez uma cidade medieval no ano 1363. Esta cidade era cortada por um longo e largo rio e somente uma ponte ligava as duas extremidades. A ponte tinha sido construída em 1283 e desde então não havia passado por nenhuma reforma.
Ana, uma moça de vinte e três anos, morava no que chamarei de lado “A” da cidade. Ela era noiva de Carlos, um rapaz de vinte e oito anos e que morava no lado “B” da cidade.
O casal de noivos parecia se amar, pois isso era o que diziam muitos dos moradores da cidade que constantemente os flagravam em juras de amor eterno e afeto carinhoso. Ana e Carlos iriam se casar em seis meses.
Certo dia, Carlos sugeriu a Ana que tivessem relações sexuais antes do casamento, mas, Ana negou veementemente, pois a virgindade era um valor extremo para ela, que tinha o sonho de se entregar pura na noite de núpcias.
Em um dado momento a cidade foi assolada por fortes ventos e uma tormenta fez a ponte ruir, separando as duas partes da cidade.
Uma sequência de eventos começou a ser gerada, uma vez que há oitenta anos os serviços de barcas tinham sido extintos, justamente na inauguração da referida ponte.
Desde então, não havia barqueiros na cidade. Ana foi separada de Carlos, assim como inúmeras famílias, casais, amigos etc. O tempo necessário para a reconstrução da ponte seria de um ano.
André, um rapaz de vinte e quatro anos que morava perto do rio, tinha em seu quintal um velho barco e, prontamente, pôs-se a reformá-lo.
Em poucos dias André já fazia travessias para alguns moradores, desde que pagassem uma quantia que, nos dias de hoje, seria equivalente a um salário-mínimo.
Devido ao trabalho de André levando e trazendo pessoas, logo se instaurou na cidade uma onda de rumores sobre os acontecimentos do lado “A” e do lado “B”.
Brigas, saques e revoltas eram assuntos constantemente trazidos pelos poucos abastados que podiam pagar o preço cobrado pelo André. A falta da ponte patrocinava inúmeros problemas sociais na cidade.
Ana, provavelmente muito preocupada com seu amor Carlos, iniciou uma série de tentativas frustradas de atravessar o rio, tais como tentativas de cruzá-lo a nado; construção fracassada de jangadas etc.
Quanto mais o tempo passava, mais Ana parecia adoecer de preocupação, tristeza e saudades, diziam seus conhecidos.
Passados quatro meses, Ana adoecida resolve ir ver André e pedir seu auxílio na travessia. André prontamente aceitou levá-la até a outra margem, desde que Ana passasse uma noite com ele no barco.
Transcorrido um mês desde o convite de André, Ana, adoecida de saudades e extremamente preocupada com Carlos decide procurar Elisabeth, uma escritora que redigia contos e aconselhamentos para um pequeno jornal da cidade.
Elisabeth era tida por muitos moradores como uma sábia mulher e uma conselheira sempre disposta a ajudar os que necessitassem de auxílio.
Ana pediu ajuda a ela, perguntando-lhe: “Devo ceder ao pedido de André para ter notícias do meu amor?”
Elisabeth decidiu não a auxiliar com seus conselhos e Ana retornou para casa, segundo nos contam, abatida e fragilizada.
Um mês após este episódio, Ana resolveu ceder ao pedido de André. Passou uma noite com ele e ao amanhecer, foi levada por André até a margem oposta.
Uma vez em seu destino, Ana encontrou-se com Carlos. Os dois se abraçaram e se beijaram e a primeira coisa que Ana falou para Carlos foi a seguinte frase: “Carlos, não quero e não posso esconder nada de você, pois o amo. Fiz de tudo para estar aqui, e não tive escolha, a não ser passar uma noite com o André e....”.
Neste momento Carlos começou a agredi-la verbalmente chamando-a inclusive de prostituta. Assustada, Ana fugiu para o barco e retornou para o lado “A” da cidade.
Quando voltava para casa, Ricardo a encontrou chorando e perguntou o que tinha acontecido. Ana relatou a história desde seu início.
Ricardo a levou para sua casa e retornou sozinho para a beira do Rio. Lá chegando, ao encontrar André, bateu muito nele.
Posteriormente pegou seu barco, atravessou o rio e, lá chegando, procurou Carlos. Ao encontrá-lo, bateu muito nele, retornando para sua casa logo após estes acontecimentos.
Agora pause a sua leitura e escreva as quinze perguntas.
Quando realizo esta dinâmica presencialmente, permito que cada participante faça as perguntas para mim, como se eu fosse uma das personagens que se deseja arguir.
Como conheço o desenrolar oculto da trama, assumo a personalidade das personagens e vou concedendo as respostas para os participantes.
Tenho em minha mente as características mais marcantes de cada personagem, o que concede certo vigor e coerência às suas biografias.
Infelizmente, e por motivos óbvios, não nos foi possível passar por esta experiência completa, mesmo assim sou capaz de imaginar como podem ter sido elaboradas algumas de suas perguntas.
Minha experiência mostra que, na maioria das vezes, as pessoas que realizam este exercício se esquecem de investigar a complexidade das relações humanas e deixam transparecer em suas investigações alguns de seus juízos moralizadores, algumas críticas transmutadas em perguntas, ou mesmo algumas acusações apressadas, tendo como referência meras suposições.
As linhas abaixo contém alguns exemplos de perguntas que meus clientes ou alunos costumam fazer às personagens André, o barqueiro; Ana, a noiva; Carlos, o noivo; Elizabeth, a escritora e conselheira; Ricardo, um morador da vila.
Compare com as suas perguntas.
Pergunta 1: André, você se considera um mau caráter ou um oportunista?
Comentário: Na história, André é um barqueiro que atravessa pessoas de margem a margem de um rio. O preço cobrado pelo André é algo em torno de um salário-mínimo.
Todavia, ainda que não explicitado na trama, os motivos que levam André a agir desta maneira são bastante compreensíveis e poderiam ter sido investigados por meio de perguntas menos precipitadas e carregadas de emoção.
A pergunta acima incorre em um juízo sem fundamentação, além de ser elaborada segundo uma lógica binária, onde, ou se é uma coisa ou outra.
Opção de pergunta: André, quais foram os motivos que o levaram a decidir o preço que cobraria por suas travessias?
Comentário: Note que a pergunta acima é isenta de juízos prévios e não incorre em acusações precipitadas.
Além disso, tem potencial para criar um contexto menos conflituoso; uma interseção positiva entre o indivíduo que pergunta e a personagem da história.
Pergunta 2: Ricardo, o que te levou a fazer justiça se os problemas não eram seus?
Comentário: Como visto, Ricardo é uma personagem que toma partido de alguns problemas sofridos por Ana, a noiva.
Na história não existe outra alusão à relação de Ricardo com Ana. A pergunta acima é repleta de pressupostos e juízos moralizadores que desnudam parte da forma do perguntador pensar.
Este infere, sem nenhuma fundamentação, que os problemas não são de Ricardo.
A segunda inferência é que só devemos agir quando os problemas são nossos, o que é uma opinião que deve ser levada em consideração, muito embora existam inúmeras pessoas que pensem de maneira diametralmente oposta.
Opção de pergunta: Ricardo, você tem algum tipo de relação com a Ana?
Comentário: Essa pergunta é uma pergunta investigativa. Não transparece nenhum tipo de juízo valorativo e, caso fosse feita, poderia ter ajudado a descobrir um fato muito relevante e oculto na história, uma vez que Ricardo era irmão de Ana.
Pergunta 3: Elizabeth, sendo você uma conselheira, por que não ajudou a Ana quando ela te solicitou auxílio?
Comentário: Durante a leitura da trama há um trecho que afirma que Elizabeth era tida por muitos moradores da cidade como uma mulher sábia e uma conselheira sempre disposta a ajudar.
Entretanto, esta é uma percepção relatada por terceiros, ou seja, por alguns moradores da cidade.
Na história, Elizabeth não se autointitulava conselheira, nem mesmo sábia. A pergunta acima é feita em um tom acusatório, como se Elizabeth tivesse a obrigação de atender ao pedido de Ana.
Opção de pergunta: Elizabeth, você poderia relatar como transcorreu a sua conversa com a Ana?
Comentário: Com a pergunta acima se abre uma possibilidade de diálogo, pois a questão é isenta de acusações amparadas no que se ouviu de terceiros.
A pergunta também gera a possibilidade de ouvir da Elizabeth o seu ponto de vista com relação a sua suposta posição de conselheira, uma vez que este “título” a incomodava bastante.
Pergunta 4: Carlos, por que você não fez nada para encontrar a Ana?
Comentário: Apesar de a história relatar que após a queda da ponte Ana tenha passado seus dias tentando atravessar o rio de todas as maneiras possíveis, a trama não faz alusão ao que Carlos estava fazendo durante o mesmo período.
A pergunta acima corre o risco de ser interpretada como sendo acusatória e agressiva, uma vez que parte da ideia de que Carlos nada fez para ver sua noiva, quando de fato, se movimentava na mesma intensidade que a Ana.
Opção de pergunta: Carlos, desde que a ponte ruiu como tem sido os seus dias?
Explicação: Para aqueles que querem compreender verdadeiramente as relações humanas, a pergunta acima pode ser mais adequada, uma vez que não apresenta pressupostos retirados da simples ausência de menção à personagem Carlos. Ausência de evidência não é evidência de ausência.
Pergunta 5: Ana, se a virgindade era um valor absoluto para você, por que cedeu às chantagens de André e se entregou a ele?
Explicação: Na história Ana afirma que a virgindade é importante para ela e que seu desejo é se guardar para a noite de núpcias com Carlos.
Em outro momento da trama Ana solicita ao André uma travessia de barco, com vistas a encontrar seu noivo Carlos do outro lado da margem.
André prontamente aceita, mas pede a Ana para passar uma noite com ele no barco.
A simples menção de passar uma noite no barco é suficiente para que a quase totalidade dos participantes da dinâmica imaginem uma noite de sexo ardente entre os dois.
Todavia, Ana e André tinham sido criados juntos e eram como irmãos, ainda que este detalhe não tenha sido relatado na história. Isso gera muitas confusões e mal-entendidos.
Passar a noite acaba facilmente se transformando em sinônimo de sexo. André é precocemente acusado de aproveitador e de cafajeste. Ana frequentemente é rotulada como uma mulher sem pudor.
Opção de pergunta: Ana, o que aconteceu na noite em que você passou com o André no barco?
Explicação: A pergunta acima é uma pergunta aberta e que não transmite nenhum tipo de pre-juízo.
Nutro a opinião que tenha mais chance de clarificar acontecimentos importantes que se mantinham ocultos, além de ser mais respeitadora dos afetos daqueles que estão diretamente envolvidos na trama.
E aí? Como você classifica sua participação?
Como falado acima, uma grande quantidade de participantes quando submetidos a este exercício destilam perguntas ácidas, precipitadas e, potencialmente, geradoras de conflitos.
Ao término do processamento do exercício é comum que alguns deles fiquem encabulados com suas participações. Mas, definitivamente, o objetivo não é esse.
Almejo investigar os automatismos linguísticos e como eles podem ser nefastos quando desejamos estabelecer vínculos mais sólidos e duradouros com as pessoas.
Se cometemos erros em um exercício simples como este, imagine a quantidade de equívocos que não incorremos nos julgamentos precipitados que fazemos quando estamos inseridos no ambiente familiar, corporativo, entre outros.
A explicação mais sensata para a origem desses erros é a presença de um senso imaginário pouco dilatado.
Toda história relatada é composta de alguns fatos e de algumas passagens que nos geram dúvidas, e se existe algo que o ser humano não costuma conviver bem é com suas incertezas.
Para superá-las, nosso cérebro preenche essas lacunas, misturando fatos com imaginações, fantasias, delírios, crenças não abalizadas e toda sorte de subterfúgios que são tomados como certezas.
Uma pessoa que tenha lido muito durante a sua vida; que tenha se deleitado com ficção de alta qualidade; que tenha desfrutado dos clássicos da literatura mundial etc., tem armazenado em sua mente centenas de histórias, personagens e tramas que a permitem conceber uma vasta quantidade de panoramas possíveis.
Em contrapartida, uma pessoa desprovida deste conteúdo, tende a preencher as lacunas com a única história que tem armazenada em sua mente: sua própria vida.
Sendo assim, seu deserto imaginativo faz com que, mesmo sem perceber, ela faça da vida das pessoas ao seu redor um “puxadinho” do seu pobre imaginário, e isso, é quase sempre devastador para as relações humanas.
“Mas, Danuca, isso realmente acontece com muita gente?”. Sim! Inclusive com CEOs de empresas multinacionais, engenheiros, doutores em computação, neurocirurgiões competentes etc.
Para o estabelecimento de boas relações, de nada adianta uma formação técnica sólida e consistente se o seu senso imaginário e sua capacidade poética são áridos e pouco férteis.
Em contrapartida, já houve ocasiões em que a senhora que serve o cafezinho e é amante de literatura e poesia tenha feito perguntas incríveis para as personagens da trama.
Identificar fraquezas em nossos argumentos, incongruências em nossas indagações e contradições em nosso pensar são ações imperativas para aqueles que almejam criar e sustentar espaços de convivência produtiva entre os diferentes e as suas diferenças; para aqueles que desejam construir redes de sentido com vistas a conviver um pouco mais harmoniosamente; para aqueles que pretendem pavimentar novos caminhos e consolidar melhores relações intersubjetivas; e para aqueles que aspiram trazer um pouco mais de sensatez para a dimensão do ser e do fazer refletido.
Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.