Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
Quando eu comecei o meu perfil no Instagram recorrentemente postava alguns vídeos onde eu conversava com uma centopeia de pelúcia.
Cabia a ela defender algumas opiniões que no passado tinham sido minhas, mas que com o tempo, deixaram de ser.
A pobre centopeia era constantemente esculachada por mim pois, como dizia Goethe: “contra nada somos mais severos do que contra os erros que abandonamos”.
Meus posts com a centopeia jamais almejaram atingir as raízes de algum problema, e confesso que naquele momento eu só estava procurando me divertir e divertir alguns amigos meus. A centopeia fez muita gente sorrir.
Lembro-me de ter postado um vídeo onde eu advertia a centopeia de que a filosofia não é um saber adequado às crianças, e isso incomodou uma senhora que resolveu “partir para briga” comigo.
Ela se sentiu ofendida com a minha fala e me enviou alguns directs onde destilava a sua indignação.
A referida senhora - que depois ficou minha amiga -, tinha atuado como professora durante grande parte da sua vida, e fez questão de afirmar que ministrava aulas de filosofia para crianças e que os resultados eram sempre excepcionais.
Visando o bem das relações humanas senti-me na obrigação de esclarecer um pouco melhor o meu ponto de vista, explicitando para ela as premissas ocultas que tentaram invalidar a opinião do meu quilópode de estimação. Os escritos abaixo fizeram parte da minha conversa com ela.
Sócrates, quatrocentos anos antes de Cristo já atentava para o fato de que: “O início da sabedoria começa com a definição correta dos termos”.
Não há discussão racional possível sem o acesso dos interlocutores ao mesmo conjunto de dados. E aí já começa o imbróglio. Provavelmente partimos, eu e a senhora educadora, de definições bastante plurais da filosofia.
Aliás, a literatura nos concede múltiplas possibilidades de definição. Eu tenho a minha, mas, desconheço qual seria a definição defendida da senhora professora.
Todavia, por ora, posso apresentar algumas definições que podem ser encontradas facilmente à distância de um “Google clic”.
Muitas delas tornaram-se clássicas, por exemplo, Gilles Deleuze e Félix Guattari a definem como: “A arte de formar, de inventar e de fabricar conceitos”. Na internet é possível ter acesso a muitas outras definições, entre elas as cinco listadas abaixo:
1. A filosofia pode ser o exercício do pensamento; na definição denotativa, a filosofia pode ser o ato de pensar, de refletir, de desenvolver as ideias.
É imperativo notar que tudo isso pode ser feito rotineiramente sem que estejamos fazendo filosofia. Todos nós pensamos, refletimos e desenvolvemos ideias diariamente.
Contudo, na maior parte das vezes, a maioria das pessoas pensa mal, reflete pior ainda e desenvolve ideias lastimáveis.
2. A filosofia pode ser em definição histórica, a construção de pensamentos dos povos ocidentais e orientais.
Grande parte dos pensamentos dos povos é advindo do senso comum, das narrativas mitológicas, da arte e da religião. Ou seja, esta também me parece uma definição bastante pobre e limitada.
3. Além disso, a filosofia pode ser uma ciência, um saber, uma sabedoria que busca a felicidade.
Essa é a típica definição que apela para uma retórica superficial que muito diz e nada acrescenta de substancial, além de reduzir a filosofia ao âmbito da ética e da moral, deixando de fora ramos importantes como a epistemologia, a estética e as demais áreas do campo filosófico.
4. A filosofia pode ser o processo maiêutico – perguntas e ironias que se pode fazer – que questiona a realidade e o mundo em que vivemos.
Sempre existirá a possibilidade de apresentarmos definições ainda mais rasas do que as anteriores, e a tentativa acima chancela esta hipótese na medida em que toma uma única ferramenta da filosofia, ou seja, a maiêutica, como a filosofia em si. Caso clássico da falácia da composição, onde se toma uma parte do todo pelo próprio todo.
5. A filosofia pode ser, além do amor pelo saber, qualquer das muitas definições de cada filósofo que já existiu – inclusive a sua – que interpretem e signifiquem o mundo.
Esta é sem dúvida a pior de todas as tentativas, ou seja, a relativização total da definição. Filosofia pode ser aquilo que você quiser que seja.
Uma carta coringa que se transmuta em qualquer coisa, exatamente pelo fato de não ser nada. Aquilo que almeja ou pensa poder ser tudo, é, de fato, coisa nenhuma!
Sendo assim, gostaria de expor a definição que me parece mais adequada e alinhada à vida de cada um dos verdadeiros filósofos que já existiram:
“Filosofia é a busca da unidade da consciência na unidade do conhecimento e vice-versa”
Olavo de Carvalho
Seguindo a definição acima, que é de onde eu parto para afirmar que a filosofia não é destinada às crianças, fica bastante claro que a prática filosófica, ainda que faça uso disso, não é somente um ofício para que você possa lidar com textos e conceitos.
Filósofos também não são aqueles profissionais que obtêm bacharelados ou licenciaturas em filosofia. Estes são os técnicos ou professores de filosofia.
Filosofia pressupõe um movimento intencional, uma busca pessoal que parte de uma inquietação verdadeira.
Essa agitação move e impulsiona o filósofo em busca de conhecimentos que apaziguem suas dúvidas.
Durante essa jornada de busca pelas respostas ele tenta construir uma unidade minimamente coerente em sua consciência. Esta é a trajetória natural de todo e qualquer filósofo verdadeiro.
Por exemplo, com relação às questões éticas, estéticas, epistemológicas etc., a tendência é que o filósofo saia em busca de informações, experiências, contradições.
Para isso ele fica atento a muitos campos de saberes: Política; ecologia; educação; antropologia; neurociência; linguística etc.
Invariavelmente, a partir de um determinado momento, todo esse corpo de conhecimentos terá que estar inserido na consciência do filósofo, e espera-se que essa mesma consciência possa guiá-lo durante sua trajetória existencial.
Sendo assim, caberá ao filósofo obedecer às verdades que foram sendo percebidas, selecionadas e assimiladas em seu caráter e sua personalidade.
Note-se que toda essa movimentação é consciente e livremente deliberada. Sendo assim, só pode ser realizada por um adulto que tenha passado por muitos dos processos de amadurecimento da condição humana, caso contrário a filosofia é, decididamente, impossível de ser concretizada.
Logo, se você não busca livremente atingir a unidade da sua consciência na unidade do conhecimento que você absorveu do mundo e vice-versa, você não está filosofando; você jamais será um filósofo; de fato, você ainda não entendeu nada.
Um bom exemplo do que foi dito acima pode ser retirado de uma recente aula que ministrei em um curso de Direito.
Na referida aula uma aluna evangélica defendia a criminalização do aborto partindo da premissa que afirma que somente Deus concede ou pode tirar a vida de um ser humano.
Todavia, minutos depois a mesma aluna arbitrava a favor da pena de morte para crimes hediondos, caindo em uma contradição bastante evidente.
Apesar de caricatos, exemplos como esse podem ser percebidos na vida de todos nós. Somos contraditórios, e mesmo quando entramos em contato com nossas contradições, muitos de nós não nos surpreendemos e continuamos tocando nossa vida ao sabor das dissonâncias cognitivas.
Já um filósofo jamais procederia desta maneira. Imediatamente corrigiria seu discurso, afastando-se de suas dissonâncias e buscando atualizar os seus conhecimentos em sua prática diária, fazendo deles a bússola que garante a retidão de sua consciência.
Creio ter deixado claro o motivo pelo qual afirmo que a Filosofia não é uma atividade para crianças. Contudo, muitas de suas técnicas podem, de fato, ser utilizadas para outros fins, tais como a alfabetização; a disseminação de valores; o apaziguamento de dores existenciais por meio da metodologia psicoterapêutica advinda da filosofia clínica integral; a obtenção de cultura histórico-filosófica etc.
Quanto às crianças, precisam mesmo de: Regras; cuidados; fantasia; arte; religião; poesia; ordens e, acima de tudo, ludicidad, brincadeira e amor.
E tenho certeza de que minha agora amiga pedagoga concedeu tudo isso para seus alunos, fazendo uso daquilo que não é filosofia, mas emana de seu interior. Neste sentido estamos alinhados e não existe espaço para desavenças.
Dr. Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.