Dr. Marcello Danucalov

Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.

Descomunicação: uma chaga que assola a família contemporânea

Se você não compreender que a linguagem é erigida por meio de quatro discursos muito diferentes e mutuamente dependentes, e não se esforçar por compreendê-los e dominá-los, provavelmente terá sérios problemas de comunicação com sua família e, quiçá, com o mundo.

Dr. Marcello Danucalov

Como vimos em nosso último artigo, atrasos nos processos de amadurecimento da personalidade tem sido a tônica da pós-modernidade, e essa infantilização da sociedade também é percebida na reduzida capacidade que muitas pessoas têm para estabelecer uma comunicação minimamente saudável e que possa afastá-las de ruídos desnecessários. A família, infelizmente, não é imune a esta chaga.

Há alguns anos, eu escrevi uma sátira onde propunha um rápido curso de descomunicação familiar efetiva e progressiva. O texto é irônico, mas, infelizmente, retrata a realidade de muitas famílias contemporâneas. Vamos às aulas?

Bem-vindo ao curso de descomunicação familiar efetiva e progressiva. Prometo que se você seguir todas as aulas com esmero e dedicação, ao término do curso você terá se transformado em uma pessoa totalmente incapaz de realizar boas leituras da realidade, ignorante dos próprios afetos e cem por cento incompetente para estabelecer uma saudável harmonia familiar

Primeira aula: inicie sua idiotização progressiva afirmando sua incapacidade e sua descrença com relação aos benefícios da leitura diária, principalmente em família. 

Se você já é um bom leitor de poesia e literatura, sugiro que pare imediatamente, caso contrário, a expansão do seu senso poético poderá gerar muita ansiedade em você.

Caso nunca tenha lido absolutamente nada, insisto que continue concedendo para você toda sorte de desculpas esfarrapadas para que o auxilie a perseverar em sua pequenez imaginativa.

Ler bons livros de poesia e literatura sabidamente ampliará sua capacidade de imaginar novos mundos, novas possibilidades interpretativas e novas dimensões potencialmente possíveis e isso pode ser bastante ansiogênico, pois o retirará do centro do universo

Todos aqueles que leem, acabarão percebendo a sua pequenez perante o mundo. Não se deixe apequenar pela leitura. Mais vale uma mente pequena que se acha grandiosa, do que uma mente grande que se acha pequena.

Caso você persevere e adote meus conselhos, será beneficiado com a certeza dos soberbos.

Sem muitas referências da complexidade da vida e dos relacionamentos humanos você poderá sempre usar sua restrição imaginativa para afirmar suas certezas e impor suas vontades ao cônjuge, aos pais ou aos filhos. 

Quem não tem muitas opções na mente não sofrerá com a dúvida e sempre poderá se posicionar a partir de sua pequenez cognitiva

Para que complicar a vida buscando sabedoria se tudo pode ser muito mais fácil na cegueira da ignorância?

Não se esqueça que é por meio do discurso poético que você poderá ascender aos discursos superiores, como o dialético e o analítico

Todavia, quem escreveu dialeticamente e analiticamente foram filósofos brancos, advindos do velho mundo, forjados no seio do maldito patriarcado e pertencentes a uma elite eurocêntrica desprezível e imunda

Com um imaginário pobre você será impedido de compreender as bobagens escritas por idiotas como Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Leibniz, Husserl e os demais anencéfalos propagadores e facilitadores da tão perniciosa expansão da consciência.

Logo, lembre-se, mantenha-se longe dos livros! Mantenha seus filhos longe dos livros. Rebele-se com sua esposa caso ela queira estudar clássicos ou fazer bons cursos

Jamais atreva-se a expandir sua percepção da realidade. A ignorância é uma benção e deve ser preservada.

Segunda aula: A segunda maneira de discursarmos e conversarmos é a retórica. E como todos os discursos, é somente uma ferramenta que pode ser usada adequadamente ou inadequadamente. 

A retórica é empregada quando queremos que nosso interlocutor “compre” uma ideia nossa. É um tipo de guerra de ideias, onde a minha precisa se sobrepor à sua, e a sua precisa se sobrepor às de todos os membros da sua família.

A retórica é usada por vendedores que desejam nos seduzir e nos convencer dos benefícios de seus produtos. 

É utilizada por advogados que querem convencer o juiz da culpa do réu ou da inocência do seu cliente. 

É usada também pelos pais que querem fazer com que seus filhos compreendam determinados ensinamentos importantes para educação.

Segundo estudiosos da linguagem, a retórica deve ser usada com cautela e em momentos específicos, pois, nem todas as circunstâncias clamam por um discurso retórico e por uma “guerra” entre opiniões contrárias.

Não dê ouvidos a esses especialistas! Acredite em mim! A retórica pode e deve ser usada inúmeras vezes durante o dia. 

Se você realmente quer aprender técnicas de descomunicação deve tratar as suas opiniões como bichos de estimação. 

Acalente-as, proteja-as, defenda-as com a sua vida caso seja necessário. Para quem busca descomunicar-se e gerar caos na vida familiar, o vício retórico é o melhor remédio, digo... veneno.

Sua opinião deve ser sempre a vencedora. Por exemplo, aceitar que o argumento do cônjuge é melhor do que o seu é para os fracos! 

Pouco importa se você conhece a fundo o assunto que está sendo debatido. Não importa que você sequer tenha lido uma linha sobre a questão. Não importa que você seja um ignorante quanto ao assunto debatido. O importante é sua vitória. Logo, não seja fraco. Não flexibilize seus pontos de vista. 

Quem flexibiliza os pontos de vistas são filósofos abestalhados que não entendem nada da vida. 

Querem passar para você uma imagem de inteligentinhos e de buscadores de uma verdade que não existe. 

Lembre-se, não leia! Não se informe! Não ceda! Aja de maneira histriônica, fundamentalista e enlouquecida. 

E lembre-se das análises que o professor Olavo de Carvalho nos concedeu em seu livro: A fórmula para enlouquecer o mundo:

“No Brasil de hoje, todos os ‘formadores de opinião’ mais salientes, sem nenhuma exceção visível – comentaristas de mídias, acadêmicos, políticos, figuras do show business – pensam por figuras de linguagem, sem a mínima preocupação – ou capacidade – de distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõe seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira direta, sem uma realidade mediadora que possa servir de critério de arbitragem entre emissor e receptor da mensagem”.

A discussão racional fica assim inviabilizada na base, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriônico, fanático e intolerante”. 

Terceira aula: a terceira forma de discursarmos é conhecida como dialética. Este tipo de discurso pressupõe que os participantes não queiram, como no discurso retórico, “vencer” o debate

Antes disso, todos devem desejar alcançar a verdade. Logo, pouco importa qual argumento sairá vitorioso. 

O importante é que este discurso conduza os participantes a um conhecimento mais profundo sobre o tema debatido.

Outro aspecto importante diz respeito ao estado psicológico dos participantes do discurso dialético. 

Todos eles devem ser possuidores de um espírito desprovido de qualquer malícia. Um coração duro será sempre um empecilho para o desenvolvimento do espírito dialético. 

Logo, as características necessárias para que o discurso dialético seja plenamente realizado chocam-se com os objetivos deste nosso curso, o atingimento progressivo e efetivo do estado abestalhado de descomunicação ampla, geral e irrestrita. 

Não se deixe seduzir por tais bobagens. Persevere firme rumo à nossa meta: a total idiotização do discurso e da comunicação com a progressiva fragmentação familiar.

Lembre-se sempre: A verdade é relativa; cada um tem a sua e a nossa é sempre a mais verdadeira; corações moles são para os frouxos; o que almejamos é vencer sempre, não importa como

Agindo assim você produzirá diariamente muitos ruídos, conflitos e misérias no seio da família, mas, em compensação, se manterá no centro do universo e não terá a sua autoestima prejudicada.

Quarta aula: agora eu vou ensinar você a enganar seus familiares por meio de argumentos lógicos

Todo mundo fala de lógica, mas a verdade é que a maioria das pessoas não sabe bem o que é isso

Lógica é a arte de montar argumentos válidos, e a maneira mais simples de fazer isso é por meio de silogismos.

Um silogismo lógico é composto de uma premissa maior, por exemplo: Todos os homens são mortais; uma premissa menor: Sócrates é um homem; e uma conclusão que é necessariamente oriunda das duas premissas anteriores: Logo, Sócrates é mortal

Note que a conclusão é certeira, ou seja, dada as premissas, é inevitável que Sócrates seja mortal.

Mas, a maioria das pessoas não entende que a lógica atinge suas certezas no âmbito do discurso, mas nem sempre esta certeza é também encontrada no mundo real, na vida, no dia a dia. 

Acompanhe este novo argumento. Premissa maior: Todos os blégs blofam; premissa menor: Blig é um blég; conclusão: Logo, Blig blofa

Como no exemplo de Sócrates, aqui também a conclusão é certa, e dada as premissas, é também inevitável que o Blig dará uma blofadinha. 

Contudo, se no primeiro exemplo o argumento é lógico no âmbito do discurso e no âmbito da vida, no segundo exemplo o argumento é lógico somente no âmbito do discurso, mas, não no âmbito da vida. 

Assim, se você deseja se tornar cada vez mais idiota no quesito comunicação, esqueça que a lógica nem sempre se manifestará no mundo real

Agindo assim você poderá sair sempre vitorioso nos debates, mesmo que seus argumentos sejam fantasiosos e impossíveis de serem encontrados na realidade.

Não se esqueça, comporte-se sempre como um fundamentalista. Esfregue na cara dos seus familiares que o argumento deles não tem lógica. 

Destile todo seu pseudo saber racional humilhando a todos que passarem pelo seu caminho. E pouco importará que seus exemplos não sejam encontrados na vida real. Isso é um mero detalhe e ninguém precisa saber disso. 

Espero que este curso de descomunicação familiar efetiva e progressiva possa tê-lo ajudado a apequenar seu senso imaginário; a conceder-lhe habilidades para proferir discursos retóricos rasos, persuasivos e mentirosos; a tê-lo estimulado a jogar fora a dialética; e a muni-lo de uma artimanha lógica que poderá imbecilizá-lo ainda mais, destruindo progressivamente a harmonia familiar

Parabéns.