Cientista político, com mais de 24 anos de experiência na formulação e gestão de políticas de controle do crime e da economia ilícita, para o setor público e privado, no Brasil e no exterior.
Não houve debate sobre segurança pública na Constituição Federal de 1988. Apenas sobre polícia, mais especificamente, sobre a existência delas.
Isso ocorreu em razão do despreparo dos parlamentares para o tema e do ímpeto de muitos políticos que, por rancor ou desprezo, pretendiam tirar as forças de segurança da Constituição ou pelo menos enfraquecê-las, em especial as Polícias Militares, como retaliação ao anterior regime militar.
Portanto, o capítulo da Constituição que trata de segurança pública tem um único artigo, todo ele consumido pelo embate entre o ataque de parlamentares radicalizados e a ação de defesa das polícias e suas entidades para garantir sua existência.
Há também marcas da rivalidade entre as próprias polícias, especificamente, entre oficiais das PM e delegados de polícia, preocupados em assegurar "áreas de influência".
Os radicais de esquerda foram derrotados e o resultado foi um artigo que garantiu a existência das polícias, uma vitória para a sociedade.
Mas, com um problema estrutural, responsável pela falta de segurança pública nos dias atuais: a completa ausência das vítimas e da sociedade, como beneficiários da segurança pública.
Em decorrência, a divisão de tarefas entre as polícias não ocorreu em torno dos "tipos de prestação de serviços" que a sociedade demanda na segurança pública, mas em torno das "áreas de influência" do embate interno e do desprezo dos parlamentares pelo tema.
Ou seja, o capítulo sobre segurança pública da Constituição não trata de políticas de segurança pública, mas apenas sobre organizações e carreiras policiais.
É como se os capítulos sobre políticas de educação e saúde regulassem apenas carreiras e competências dos professores e médicos.
Os capítulos da Constituição referentes aos três temas iniciam de forma genérica e semelhante, como "direito de todos e obrigação do Estado": a segurança pública (144), a saúde (196) e a educação (205).
Ainda temos o artigo 6º que define os três como direitos sociais e equidade de conteúdo termina aí.
A saúde e a educação seguem uma linha lógica na Constituição.
Depois da definição de obrigação estatal e direitos do cidadão, ocorre a definição do que é política de educação (artigos 206 e 214) e política de saúde (196 e 200), seus objetivos e entregáveis.
Por exemplo, na saúde está lá que o objetivo é reduzir o "risco de doenças e de outros agravos".
Também não há dúvida sobre os beneficiários das políticas de educação e saúde. Por exemplo, o artigo 208, § VII diz: "atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica; na mesma lógica, o § III garante:
"atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino."
Só depois disso, define-se "quem faz o que" na educação (artigos 206, 208 e 211) e na saúde (artigos 198, 199 e 200).
Alfabetização de crianças é responsabilidade do município, qualificação de adolescentes, do município e, principalmente, do Estado, que por sua vez concorre com a União na qualificação de adultos (ensino superior).
Na saúde, atendimentos rotineiros e emergenciais são atribuições dos municípios, assim como parte da rede especializada.
Estado e União ficam com a rede especializada mais complexa e atuam em emergências nacionais.
Percebam que as atribuições são dos entes federativos e não de um tipo de uma instituição ou classe profissional.
Somente depois da regulação, menções às carreiras de professor (206, inciso V) e médico (200, inciso II) ocorrem.
A arquitetura desses sistemas não garante eficiência, mas permite visualização e controle da sociedade, por ter sido construída no sentido lógico: do problema (demanda da sociedade) para a solução (como fazer e quem faz).
Na segurança pública, essa lógica não ocorreu. Como corrigir isso?
Alterando a Constituição no sentido da incorporação dos direitos das vítimas e das descobertas da criminologia moderna, sobre como dissuadir criminosos e proteger inocentes.
Apesar da Constituição Federal de 1988 ser conhecida pelo excesso de direitos sem lastro em obrigações, há dois direitos fundamentais que são absolutamente ignorados: o direito de ser protegido de criminosos e o direito das vítimas da criminalidade de receber justiça.
Por fim, a solução exige fazer aquilo que não foi feito na Assembleia Constituinte de 1987/88: um debate que tenha como objetivo construir o melhor arcabouço legal e a melhor estrutura policial para garantir proteção à sociedade e justiça às vítimas de crimes, os verdadeiros destinatários das políticas públicas de segurança.
Esse é o principal desafio da nossa geração.