Cientista político, com mais de 24 anos de experiência na formulação e gestão de políticas de controle do crime e da economia ilícita, para o setor público e privado, no Brasil e no exterior.
Não é a economia, a democracia, a liberdade ou uma liderança carismática que pode unir o país em torno de um tema ou causa. Hoje, quem está mais próximo disso é a segurança pública, mais precisamente a falta dela.
Ninguém suporta viver sem segurança e justiça. A segurança é o direito de “não ser vítima”, ela é produto da capacidade do Estado em dissuadir os criminosos. É aquela sensação que temos quando viajamos para fora do Brasil e percebemos que paramos de não atender o celular na rua, por medo de ser roubado ou morto.
A justiça é o direito de “ter sua dor reconhecida, considerada e reparada”, ela nasce da dívida social que o Estado contrai ao falhar em nos proteger, pois “assinamos” um contrato social que pressupõe cedermos parte da nossa liberdade (obedecer à lei) em troca de termos segurança e justiça.
Em uma sociedade civilizada, para evitar a vingança privada, a justiça é alcançada principalmente através da prisão, em tempo proporcional à dor e sofrimento causado à vítima.
E claro, mediante um justo e devido processo penal. Há exceções à pena de prisão, em regra, para os extremos: crimes muito violentos, a lei pode autorizar ação letal; crimes não violentos ou graves, a lei pode autorizar aplicação de multas, restrições ou obrigações.
Essa é a lógica de todo sistema de justiça criminal eficiente, construído nas democracias consolidadas. Mas não é assim no Brasil.
Por aqui existe a “pena de prisão em que o criminoso não fica preso”. Desde 1984, com a entrada em vigor da Lei de Execuções Prisionais (LEP), a maioria das inovações legislativas ocorreu no sentido de fazer com que a prisão, na fase de execução, deixasse de ser prisão.
A progressão de pena é a principal, permite que o criminoso fique preso a partir de apenas 16% da pena, no restante da sentença de prisão ficará em “regime aberto ou semiaberto”, ou seja, solto.
Outra forma de “prender, sem prender” é a concessão de 5 saídas temporárias por ano, cada uma por uma semana. Dispositivo praticamente retirado da LEP pela Lei 14.843/2024, conhecida como Lei Sargento PM Dias.
No entanto, o veto do presidente Lula foi no sentido contrário: expandiu a saída temporária. Pois, o conjunto de vetos retirou os limites de tempo da saída temporária (5 vezes/ano por uma semana) e as condições de fiscalização (declarar endereço real, restrições a horários e lugares, etc.). Mas, independentemente do veto presidencial, o processo de aprovação e de reação ao veto é o principal ganho para a sociedade. Explico.
A Lei Sgt Dias foi aprovada com raríssimo consenso no Congresso Nacional. A primeira votação na Câmara foi 311 a 98, no Senado foi um contundente 62 a 2 e na votação dos destaques novamente na Câmara, votação unânime pelas lideranças.
Esses placares só foram conseguidos porque houve um raro consenso, em torno da necessidade de recuperar a pena de prisão, como recurso de proteção da sociedade e prestação de justiça às vítimas. Não importa o caminho que levou ao consenso, se por convicção ou por medo da crítica do seu eleitorado, o fato é que o consenso se impôs.
E isso ocorreu porque todo parlamentar representa um setor social que clama, igualmente, por segurança e justiça para que consiga viver segundo suas crenças, sejam: evangélicos, LGBT, sulistas, nordestinos, movimento identitário, setor econômico, liberal, conservador ou socialista, todos precisam de segurança e justiça.
E todo político tem um grupo social a proteger. Este pode ser uns dos únicos (ou o único) temas que demandam da mesma forma: a necessidade da autopreservação. E sobre isso, não há nada de novo.
Em qualquer tempo, a ausência de segurança e justiça foi (e é) um fator natural de “convergência social e política” na sociedade. Todos os outros temas e problemas (economia, saúde e educação, etc.) ficam em segundo plano quando se perde a segurança e a justiça.
No passado, a busca pela solução nos levou à formação do Estado moderno. Hoje, precisamos recuperar a capacidade deste Estado em continuar a nos proteger e prestar justiça, frente aos desafios modernos à civilidade, como o crime organizado brasileiro que ousa dominar regiões no Brasil, como no Rio de Janeiro, ou ainda, tentar dominar pela violência regiões como Santos e áreas de fronteira.
São desafios na mesma categoria dos cartéis do México, Colômbia e Venezuela e das gangues do Haiti.
O resultado desse movimento de convergência que estamos testemunhando, se bem conduzido no parlamento e controlado pela sociedade, resultará não só no fim das saídas temporárias, mas no início da recuperação do nosso sistema de justiça criminal, para voltar a ser efetivo na proteção da sociedade e na prestação de justiça às vítimas. Este é o tema que pode nos unir, a escolha entre civilidade e barbárie.