Dr. Marcello Danucalov

Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.

A complexidade da vida desafia as respostas fáceis

“O marketing das teorias psicológicas moderninhas se sobrepôs à consciência da dimensão trágica da vida que praticamente toda pessoa minimamente educada sempre obteve por intermédio da leitura dos clássicos perenes encontrados na literatura séria e realista”.

Dr. Marcello Danucalov

Quem me acompanha em minhas mídias sociais ou mesmo nesta coluna já deve ter percebido que eu sou um crítico costumaz de propostas existenciais que garantem sucesso universal, como aquelas feitas por alguns coaches, profissionais da autoajuda ou mesmo por alguns psicólogos mais ingênuos e desconectados da dimensão trágica da existência humana. 

A fórmula aplicada por esses gurus é sempre a mesma: Pega-se um case de sucesso e universaliza-se os passos do suposto agente bem-sucedido, empacotando-o em uma fórmula mágica altamente sedutora. 

Se deu certo com um, dará certo com todos que aplicarem o referido procedimento. Esta simplificação demasiada da vida encontra solo fértil no mundo corporativo, na orientações feitas às famílias, no campo desportivo etc. 

Para mim, que atuo como psicoterapeuta e orientador filosófico familiar há mais de duas décadas, a simplificação da complexidade da existência humana denota uma de duas possíveis alternativas:

  1. Ou o propositor da fórmula é extremamente ingênuo e acredita em suas pataquadas;
  2. Ou é um charlatão sem escrúpulos que ganha a vida vendendo lorotas.

“Mas, Danuca, eu já li alguns livros de autoajuda e confesso que gostei de alguns. Qual seria o problema deste gênero literário?”. 

Segundo Theodore Dalrymple a autoajuda e outras promessas da psicologia moderninha vendem facilmente porque falam o que as pessoas desejam ouvir, e não o que elas precisam ouvir. 

Falam para pessoas que gostam de ser acalentadas e, que na maioria das vezes, culpam as estrelas pelas suas próprias irresponsabilidades. 

Qualquer um que entre em uma livraria vai perceber a enorme quantidade de obras que prometem soluções meramente técnicas para algo que é extremamente complexo, e todas elas são, supostamente, amparadas pelas mais recentes “descobertas cientificas”, ainda que os supostos artigos científicos nunca sejam citados.  

Em comparação, livros mais densos e que abordam temas como filosofia, história natural, religião e literatura de qualidade são cada vez mais raros nas prateleiras de entrada das referidas livrarias

Ainda segundo Dalrymple, o marketing dessas “teorias psicológicas” se sobrepôs à consciência da dimensão trágica da vida; aquela realidade austera que praticamente toda pessoa minimamente educada sempre obteve por intermédio da leitura dos clássicos perenes encontrados na literatura séria e conectada ao real. 

Tais obras agregam muito mais valor à vida do que a superficialidade com que a existência vem sendo tratada pelos gurus propagadores de certezas. 

Sobre este assunto, Nietzsche, há cento e cinquenta anos, já destilava seu veredicto: 

“Dostoievsky é o único psicólogo com quem tenho algo a aprender”. 

Todos nós fomos forjados em contextos de vida muito distintos, e como nos disse José Ortega Y Gasset em seu incrível livro Meditações do Quixote

Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo ela, não me salvo a mim”. 

Heranças congênitas individualíssimas, manifestadas em circunstâncias específicas e temperadas com o acaso que sempre está à espreita, garante de maneira acachapante a nossa singularidade existencial, para desespero dos charlatões vendedores de quimeras que afirmam ter descoberto o Santo Graal da felicidade. 

Fora isso, Ortega nos lembra que somente nossa vontade e nosso esforço poderá impedir que nos transformemos em homens massa, determinados pelas generalizações de um mundo social massificado. Eu  ainda acrescentaria: abestalhado, idiotizado, imbecilizado. 

Agora, convido você a refletir um pouco sobre a nossa complexidade, facilmente identificada por todos aqueles que não se deixam levar pelos tolos discursos dos vendedores de ilusões.

Na medida em que as circunstâncias em que estamos inseridos mudam, passamos a sentir e perceber o nosso corpo e a nossa mente de maneira totalmente singular

Em alguns lugares somos mais sensoriais e nos conectamos mais facilmente com o nosso corpo e nossas sensações, já em outros lugares somos elevados ao mundo das ideias e nos entregamos aos devaneios e às abstrações

Mas, os locais onde eu devaneio você pode deleitar-se sensorialmente, e aqueles em que eu viajo na maionese você pode preferir relaxar e aproveitar as sensações que invadem o seu corpo.

O tempo é outra dimensão que podemos divergir. Percebemos seu fluxo de maneira pessoal e intransferível. 

Para mim, que sou um amante do oceano e aficionado pelo surfe, ser envolvido por uma onda e percorrê-la dentro de seu tubo, ainda que por poucos segundos, pode me conectar com a eternidade, alinhando-me com o estranho relógio divino que marca o “tempo de Deus”

Mas, para você que pode não ter sido esculpido na água salgada e desconhece a magia que ocorre no interior de uma onda, este acontecimento, ainda que belo e curioso, perpassa a sua mente de maneira fugaz, intrinsicamente sintonizado com o tempo aferido pelo relógio dos homens.

As relações que tecemos com as pessoas que nos cercam também são particulares, singulares e, individualíssimas. 

Não é novidade para ninguém o quanto um único indivíduo pode influenciar os rumos que concedemos às nossas vidas

Uma existência pode ser moldada pela presença de um bom mestre ou destruída pela frequência com que convivemos com pessoas desprovidas de virtude

E quanto ao mundo que observamos? O que vemos, ninguém mais vê

Podemos estar inseridos no mesmo local e, supostamente, assistindo a uma mesma cena. Contudo, no drama que se desenrola no interior da minha mente, você é somente mais uma personagem

O mesmo vale para você quando, no filme projetado na sua tela mental, eu sou somente mais uma figura dramática das muitas que desfilam sob o seu olhar

O que eu vejo ninguém mais vê, e isso também vale para você. O cinema em que eu me encontro só tem um assento e a mesma regra também se aplica a todos nós, que habitamos solitários no interior de nossas salas de projeção. 

A solidão se faz presente em três aspectos da nossa existência

  • na percepção; 
  • na afetividade e 
  • na cognição. 

O que vivenciamos exteriormente e interiormente é inacessível a qualquer método de investigação da psique humana

Somos ilhas afetivas, ilhas perceptivas e ilhas cognitivas, e o acesso a essas ilhas é vedado a terceiros por motivos óbvios:

  • O que eu percebo ninguém percebe; 
  • o que eu sinto ninguém sente e 
  • o que eu penso ninguém pensa.

Nossas emoções são incontroláveis e brotam em nosso interior sem que possamos escolhê-las nem tampouco controlá-las. 

Isso nos tolhe grande parte da nossa liberdade, que fica restrita à uma parca escolha de como nos comportamos a partir da emoção que nos abarca

E para piorar um pouco mais, o evento que me alegra pode te entristecer; aquele que me deflagra a ira pode fazê-lo sorrir; e o que acarreta a repulsa em mim pode detonar a mais beatífica compaixão em você. 

Como o mundo é infinito e temos que tomar decisões rápidas, temos o hábito de agir antes de investigarmos com profundidade os desafios que se apresentam a nós. 

Operamos movidos por conceitos elaborados previamente a uma experiência não vivida; agimos movidos por preconceitos; somos, todos nós, sem exceção, proprietários de pré-juízos; e a maioria das opiniões proferidas por nós foram absorvidas sem muita reflexão do tecido social em que estamos inseridos.

No âmbito da comunicação a coisa não é diferente. Como nosso cérebro já nasce com módulos específicos para a aquisição da linguagem, a fala vai acontecendo de maneira natural

Quando menos se espera, o bebezinho já está balbuciando palavras de maneira espontânea, mimetizando os adultos à sua volta

Porém, usamos termos bastante distintos em nosso dia a dia, pois os escolhemos quase sempre de maneira irrefletida e aleatória sempre que desejamos nos comunicar com outro alguém. 

Isso confere aos nossos discursos uma identidade particular, ainda que esta singularidade demonstre algumas características do lugar onde foi gestada.

E quanto ao pensamento, você costuma refletir sobre o seu próprio pensar? Tem gente que passa a vida pensando nos outros, para cuidar ou para fazer intriga. 

Tem gente que pouco percebe as pessoas. São aqueles que fixam sua atenção nas coisas do mundo, nas nuvens, nas ruas, na grama, nos grãos de areia na praia. 

Outros não vivem o presente e com isso aniquilam da sua tela mental de tudo que se desenrola no agora. 

Esses jazem no passado que se foi ou projetam-se no mundo da imaginação antecipando cenários futuros. Habitam em tempos que não são, enquanto desprezam o único tempo que é

A estrutura desse nosso pensar é dependente de bilhões de neurônios que se entrelaçam em trilhões de conexões sinápticas emaranhadas de maneira tão complexa que é impossível que haja dois cérebros idênticos no universo.

Ainda que alguns neurobiólogos sonhem em decifrar os códigos neurais que subjazem os processos cognitivos, é pouquíssimo provável que tais algoritmos, ainda que utopicamente possam ser idênticos, simbolizem e reflitam o mesmo saber em cérebros diferentes. 

Ou seja, o meu “código de barras” pode ser igual ao seu, mas denotará um outro produto cognitivo de nada tem a ver com o seu.

Nossos objetivos e metas de vida também podem ser distintos. A história que eu desejo viver pode parecer horrorosa para um outro indivíduo

Isso sem falar que, enquanto algumas pessoas planejam suas vidas de maneira minuciosa, outras tantas nem sequer chegam a pensar sobre o propósito de suas existências e levam a vida ao sabor do samba do Zeca Pagodinho, deixando a vida levar, sem planejamento, sem roteirização, sem cautela, sem prudência, sem nada

Somos movidos por paixões descontroladas que se somam, se anulam, se reforçam e se desmentem, e esses ardores são, quase sempre, alimentados pelo sabor do acaso dos encontros cotidianos. 

Exatamente por isso é desafiador prever os comportamentos daqueles que convivem conosco e, às vezes, dependendo do nosso nível de maturidade, torna-se impossível compreender a nós mesmos. 

Nossa expressividade também varia enormemente. Expressamo-nos de maneiras infinitas, e os canais por onde entregamos ao mundo o que passa dentro de nós também são amplamente variáveis: 

  • escrita, 
  • fala, 
  • música, 
  • pintura, 
  • fotografia e 
  • tantas outras formas de expressão que chamamos de dados de semiose. 

Porém, nossa semiose nem sempre é compreendida pelo nosso interlocutor, e nós mesmos nem sempre atribuímos à semiose dos outros a atenção que lhe é devida

Isso é facilmente visto quando analisamos as múltiplas formas de manifestar ou desejar o amor

  • tem gente que ama dar e receber presentes; 
  • outros ofertam palavras de afirmação; 
  • há quem ame concedendo tempo de qualidade ao ser amado; 
  • existem também os indivíduos que se sacrificam em intermináveis atos de serviço; e
  • há os sensoriais, os que amam por meio do toque físico.

E quanto aos nossos hábitos irrefletidos? Muitos de nós podemos passar toda uma vida reproduzindo comportamentos, e assim tornamo-nos vítimas de armadilhas conceituais que nos aprisionam sem que tenhamos consciência de que estamos encarcerados. 

Também podemos ser regidos por valores contraditórios, o que nos causa muita confusão e pode nos desorientar na jornada da vida. 

Nossas crenças e dogmas podem oscilar, no decurso de uma só vida, do ateísmo militante à hiperreligiosidade cega e fundamentalista. 

Apropriamo-nos do mundo por meio de filtros de diferentes dimensões. Concedemo-nos ou não diversos papéis existenciais, inventados, introjetados, invejados, herdados, copiados. 

Encadeamos ideias por meio das mais diferentes abordagens. Levantamos hipóteses; agimos cegamente; experimentamos ideias ou nos atiramos na vida como kamikazes heroicos e inconsequentes

Compartilhamos verdades com amigos próximos ou morremos na solidão sem nada comunicar de nós mesmos. 

Entender como cada uma dessas características age na formação de um todo singular é o desafio que todos nós temos que encarar se quisermos atingir um nível mínimo de maturidade e autoconhecimento. 

Aquela maturidade rara, encontrada em indivíduos cem porcento responsáveis por suas biografias, que não culpam o mundo por suas fraquezas, nem buscam consolos em mentiras com aparência de sinceridade. 

Fazer isso não é algo tão simples como muitos nos querem fazer crer

Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada - muitas vezes pelos excessos de nossos próprios atos - culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável desculpa do homem devasso - responsabiliza uma estrela por sua devassidão”. 

Edmundo, Rei Lear, de Shakespeare, Ato 1, Cena 2. 

Dr. Marcello Danucalov

Doutor em Ciências (psicobiologia);

Mestre em Farmacologia;

Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.