Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
Nos últimos vinte anos tenho atendido inúmeras famílias que buscam orientação filosófica e psicológica para estruturar melhor a relação entre seus membros, e uma das maiores inquietações dos pais é que seus filhos cresçam sem desenvolver um corpo de virtudes que possa auxiliá-los a se tornarem adultos maduros e responsáveis.
Contudo, uma constatação muito comum durante os processos de orientação filosófica familiar é a grande dificuldade que os pais têm em definir os termos virtude e valor, que ora são tidos como sinônimos, o que não são; e ora são erroneamente compreendidos, o que costuma ser ainda mais comum.
Se educar os nossos filhos é a tarefa mais nobre e desafiadora que exercemos em nossa vida, constatar que somos incapazes de definir termos tão basilares para o cumprimento desta empreitada é, na melhor das hipóteses, algo curioso, e na pior delas, algo devastador.
Essa falha inviabiliza a base do desenvolvimento de uma metodologia educacional sólida, consistente e aplicável na realidade do dia a dia.
Ou seja, sem isso, o processo educacional provavelmente claudicará e estará fadado ao fracasso.
Há muitas definições possíveis para os termos valor e virtude, e uma delas nos foi dada pelo professor Antonio Marchionni em seu elegante livro Ética, a Arte do Bom:
“Os valores são metas valiosas, que a pessoa (ou sociedade) se prefixa como objetivos de vida. As virtudes são ações excelentes, aptas a realizar aquelas metas. O valor diz o que quero alcançar na vida, a virtude diz quais ações praticar no dia a dia para chegar lá.”
Ofertado os conceitos, Marchionni segue para os exemplos:
“São valores, por exemplo, a serenidade de espírito, o prazer, a profissão alegre, a união familiar, a paz social, a independência econômica, a amizade, o filosofar, a realização pessoal. São virtudes a prudência, que nos torna serenos, a temperança que nos da prazer, a pontualidade que nos torna bons profissionais, a fidelidade que mantém a união do casal, a partilha que realiza a sociedade justa, a solércia que nos faz economicamente independentes, a prontidão que alimenta a amizade, o exercício da discussão que nos torna filósofos e sábios.”
É importante perceber que cada valor almejado necessita de uma virtude sendo praticada, preferencialmente, todos os dias.
Somente assim podemos desenvolver hábitos bons e direcionar nossa força no sentido correto.
Mas, agora, vamos voltar um pouco aos meus atendimentos clínicos. Uma das reclamações mais comuns que costumo ouvir dos pais que buscam minhas orientações é a seguinte:
“Dr. Danucalov, meu filho está com dezesseis anos e muito me preocupa o seu comportamento autocentrado e egoísta. Parece que ele não é capaz de perceber as dores e as necessidades das outras pessoas. Ele não é capaz de se doar para nada e nem para ninguém. Parece não ser empático, não ser minimamente compassivo. Isso é normal nesta idade?”
A resposta a esta pergunta é composta de muitas camadas, e duas delas são as seguintes:
É relativamente comum que durante o processo de amadurecimento dos adolescentes eles se tornem um pouco mais autocentrados e egoístas. Porém, há um limite para este comportamento.
Ainda que existam explicações neurobiológicas e psicológicas para esta conduta pouco altruísta, o despreparo dos pais é, na maioria das vezes, o maior responsável por este indício de futura falha no caráter dos filhos.
Pense comigo caro leitor, no exemplo dado acima fica bastante claro que os pais desejavam que o seu filho conquistasse o valor da empatia, que também podemos chamar de compaixão.
Mas, como todo valor clama por uma virtude, a ação que deveria ser praticada diariamente pelo adolescente em questão era a caridade.
Mas, será que a maioria dos pais compreende o que deve ser feito se quisermos que nossos filhos sejam caridosos?
Se quisermos aprender a tocar guitarra para realizar solos como o de Eric Clapton, precisaremos praticar diariamente por, no mínimo, dez anos; se ambicionarmos falar inglês fluentemente, deveremos estudar com muito afinco, além de conviver rotineiramente com nativos da língua inglesa; se aspirarmos ganhar uma medalha olímpica, devemos devotar grande parte da nossa vida a um árduo processo de treinamento físico e psicológico.
Logo, se pretendermos ser altruístas, compassivos e empáticos, também precisaremos treinar!
E quanto a você caro leitor, já é pai? Já é mãe? O que tem feito para que seu filho desenvolva a virtude da caridade? A maioria dos pais que eu atendo fica constrangida quando faço esta pergunta.
Se formos francos e corajosos o suficiente para evitarmos as tergiversações, teremos que admitir que as ações caridosas provavelmente são feitas umas duas ou três vezes durante um ano, e nem sempre os nossos filhos participam de maneira ativa.
Podemos lembrar da doação das roupas que não nos servem mais; ou de alguma ação comunitária e pontual na igreja, como a participação no dia da pizza ou do porco no rolete; ou da conhecida arrecadação de brinquedos velhos com vistas a serem doados no Natal visando a alegria das crianças do orfanato; ou talvez um esforço pontual para ajudar as vítimas de uma enchente devastadora.
Convenhamos, se o intuito é que os nossos filhos criem o hábito da caridade por meio deste parco treinamento, teremos que assumir que estamos completamente desinseridos da realidade.
Assim como toda grande habilidade emerge de um árduo processo de treinamento, também nos é possível treinar para sermos caridosos, e este treino deve começar o quanto antes na vida dos nossos filhos.
Nosso cérebro é um órgão que demonstra grande capacidade adaptativa e, quando somos bem pequeninos, é ainda muito mais fácil para ele criar conexões entre as células nervosas que o compõem.
São essas conexões que servirão de base para os comportamentos virtuosos que se manifestarão facilmente no futuro graças à força do hábito.
Uma das maneiras mais eficazes de treinar a caridade é estipular um ou mais dias da semana em que seu filho terá que realizar uma pequena tarefa caridosa.
Este estímulo será conhecido como o momento da caridade. Mas, você vai precisar definir muito bem os dias e os horários e, acima de tudo, comprometer-se junto com o seu filho a não sabotar a atividade proferindo desculpinhas tranquilizadoras, como: “Hoje não deu, o dia foi corrido”; ou “estávamos viajando neste dia, logo, a atividade da caridade não pode ser realizada”.
⎯ Bom dia meu filho! Hoje é quarta feira. Lembre-se que às 18h00min você tem o momento da caridade. Já pensou no que vai fazer hoje?
⎯ Sim mamãe! Neste horário eu vou descer e levar um pedaço de bolo de fubá com um copo de café para o zelador Giba. Ele gosta bastante e sempre fica muito agradecido.
⎯ Perfeito filho. E na sexta feira, já sabe o que vai fazer?
⎯ Sim mamãe. Neste dia eu vou ligar para a vovó e conversar um pouco com ela. Ela fica muito feliz quando eu faço isso.
⎯ Que ótimo filho. Mamãe está orgulhosa de você. Tenha um bom dia e se tiver alguma dificuldade para cumprir suas obrigações de hoje, conte comigo para ajudá-lo. Te amo.
Agora reflita comigo:
Você consegue perceber o poder disso na construção de hábitos virtuosos?
Educar nossos filhos para adquirir virtudes pressupõe estarmos atentos a aspectos muito básicos e que são, rotineiramente, ignorados:
Só criticar as não ações do filho não resolverá o problema:
A prudência é a maior de todas as virtudes e ela só pode ser adquirida mediante instrução e estudo diário.
Por falar em leitura, não posso deixar de dividir com você alguns fragmentos de um artigo do professor Olavo de Carvalho que me impactou profundamente há alguns anos.
O nome do artigo é Pobreza e Grossura, e ele pode ser lido na íntegra na internet ou no livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota.
Olavo começa nos lembrando que somos um povo polido, mas, desprovido de virtude:
“Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou a ignorância dos princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa educação.”
Depois disso nos faz pensar em algo que eu não versei neste artigo, mas que também é imprescindível em todo e qualquer processo educacional, o exemplo:
“Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas. Mas chamava de “senhor” cada mendigo que o abordava na rua, e sem que ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal.”
Como sempre, Olavo nos alerta para a desgraça produzida por governos de esquerda, que desestimulam a caridade individual para fazer-nos crer que o “papai Estado” virá ao nosso socorro, satisfazendo-nos com suas rações miseráveis e imbecilizando-nos gradativamente com suas estratégias “educacionais” diabólicas:
“As prefeituras e governos estaduais nos advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos, sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos, pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das câmeras, para a glória de São Betinho.”
Por último, Olavo, versando sobre o ato de dar esmolas, desfere uma marretada em nossa consciência:
“Ainda há quem diga: “Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!” Pois que beba! Tão logo o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês querem educar o pobre “para cidadania” e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que, atormentado pela miséria, tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola? Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam “senhor”, “senhora”, perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade. Façam isso todos os dias e, em três meses, verão esse homem, essa mulher erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego, vencer. “
Espero que este artigo possa ajudá-lo a melhorar ainda mais a educação que você concede ao seu filho, e que, a partir desta reflexão, você mesmo possa repensar parte de seus sistemas de crenças e opiniões.
Dr. Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.