Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.
Você já parou para refletir sobre a nossa inata capacidade de nos comunicar por intermédio da fala? Sim, somos seres naturalmente falantes, e para chegarmos a esta conclusão só precisamos lembrar que ninguém nos ensinou a falar.
Basta colocar um bebê ao lado de um grupo de adultos falantes e em pouco tempo o nenê balbuciará suas primeiras palavras sem que ninguém o tenha ensinado.
Nascemos biologicamente programados para falar e é por isso que poucos de nós se preocupam em responder uma simples, mas importantíssima questão: Será que eu sei falar e me comunicar bem?
A referida naturalidade da fala pode fazer com que esqueçamos de uma obviedade: Ainda que tenhamos herdado da natureza determinadas competências, cabe a nós realizarmos um esforço para elevarmos esta herança a um patamar de excelência, e isso, poucas pessoas estão dispostas a fazer.
Uma significativa parte das questões trabalhadas por mim em processos psicoterapêuticos individuais ou familiares surge da falta de habilidade que muitas pessoas demonstram no trato com as palavras, e isso gera conflitos entre pais e filhos, marido e esposa, funcionário e chefe etc.
O cuidado com a comunicação implica uma certa humildade para aceitar o fato de que, talvez você não fale bem; talvez você tenha dificuldades em se comunicar; talvez você não saiba diferenciar um discurso poético de um discurso retórico; talvez você faça confusão ao tentar explicar as diferenças entre um discurso dialético e um discurso analítico etc.
Porém, ainda que essas questões sejam muito relevantes para nossos problemas do cotidiano, vou deixá-las para uma outra ocasião.
Por enquanto, proponho ficarmos em algo muito mais básico, mas de grande importância: Nossa capacidade de escutar e de fazer boas perguntas.
As perguntas são atos da fala que, como todos os demais, são ensaiados no pensamento, e muitos deles podem ocorrer de forma desconexa, desarmônica, dissonante, saltatória, não linear.
Em muitas ocasiões, conversas são edificadas sobre automatismos linguísticos característicos das corriqueiras disputas de opiniões e pontos de vista.
Nestes momentos, quase nunca construímos um raciocínio claro e elegante, pois as contendas cotidianas podem contaminar-nos com afetos variados, minando assim, as bases nas quais um diálogo saudável e sem grandes ruídos pode ser erigido.
Na medida em que diminuímos nossa ansiedade em contrapor os argumentos do nosso interlocutor, e quando nos damos a chance de sermos menos afoitos com nossas palavras, podemos nos deparar com algo perturbador, que é a constatação de que nem sempre sabemos justificar nossas opiniões e ações.
Em outras ocasiões podemos perceber que nosso repertório vocabular pode ser insuficiente para traduzir algumas de nossas ideias e crenças.
Os encadeamentos das frases e a construção do discurso, por vezes podem ser precários para manifestar nossos sentimentos.
A verificação de que o pensamento pode não encontrar amparo em nossas argumentações é uma constatação que pode nos constranger.
Mas, este mal-estar pode ser amenizado quando aprendemos a escutar. Ouvir todos nós ouvimos, pois fomos agraciados com o sentido da audição.
Entretanto, muitos ouvem, mas não escutam. Se o ouvir é meramente biológico, o escutar implica uma tomada de decisão mediada pela vontade.
Quando escutamos e somos escutados os conflitos têm maiores chances de serem apaziguados ou mesmo resolvidos.
A escuta ativa nos dá maiores chances de compreender o outro e a nós mesmos, e isso pode aumentar a chance de elaborarmos boas perguntas para prosseguirmos com um diálogo que agregue valor à vida e que desague em águas calmas.
Perguntas bem elaboradas podem gerar grandes reflexões. Mas, para que isso ocorra, o arguidor terá que ser detentor de uma rara competência, que é a de fazer perguntas puras, como aquelas proferidas por crianças.
Essas perguntas caracterizam-se por serem francas, genuínas e desprovidas de segundas intenções; não foram contaminadas com os nossos pressupostos, nossos sistemas de crenças, nossas certezas, nossos juízos moralizadores, nossas codificações universais do bem viver que nem sempre são amparadas por verdades transcendentes.
Líderes genuínos, bons professores, psicoterapeutas competentes, pais amorosos, cônjuges que se respeitam, técnicos desportivos que exercem fascínio e filósofos apaixonados pela busca da verdade, geralmente, são detentores desta competência. Perguntas puras são potencialmente transformadoras. São elas que comumente encontramos nos raciocínios filosóficos mais inspiradores e atraentes.
Aprender a fazer boas perguntas é uma tarefa árdua e que só se adquire com a maturidade.
Conhecer os nossos automatismos é imprescindível para aprendermos a nos comunicar bem.
Identificar nossos preconceitos, padrões de pensamento, vícios linguísticos, nossas limitações intelectuais, fragilidades emocionais e vergonhas perenes é uma habilidade que demanda tempo e coragem para ser conquistada.
Uma vez adquirido esse autoconhecimento, fica relativamente menos desafiador impedir que tais armadilhas do pensamento sejam oferecidas ao nosso interlocutor na forma de perguntas contaminadas.
Se desejamos criar um território conversacional menos conflituoso com aqueles que nos cercam e que são caros a nós, devemos aprender a fazer as perguntas corretas.
Elas devem ser recebidas pelo interlocutor sem que ele se sinta recorrentemente julgado, constantemente manipulado, insistentemente criticado, censurado, recriminado, repreendido.
Para que isso ocorra devemos entender que alguns cuidados são necessários, como por exemplo:
Todos nós julgamos, pois o juízo é a base da ética, da escolha, das tomadas de decisão.
Porém, muitas ponderações morais são realizadas de maneira precoce e atabalhoada e podem ser ofertadas na forma de perguntas.
Se o objetivo é que a conversa transcorra em mares calmos, a transparência demasiada e afoita de nossos juízos pode fazer com que a conversa termine em oceanos revoltos;
Muitos conselhos precoces podem vir disfarçados de perguntas. A superação da quase irresistível tendência de colocar-se como conselheiro e detentor da verdade, é um dos maiores desafios que o bom comunicador terá que transpor.
Como bem sabia o velho Sócrates, a presunção de que o nosso ponto de vista pode ser útil em toda e qualquer circunstância pode limitar a capacidade do nosso interlocutor de "parir" suas próprias conclusões.
Outro vício conversacional bastante comum é trocar boas perguntas por péssimas opiniões.
O mundo já está demasiadamente contaminado com opinadores profissionais, influenciadores irresponsáveis e palpiteiros ignorantes.
Conseguir estimular o outro a pensar de maneira mais elaborada é muito mais nobre do que vomitar opiniões pouco abalizadas e que, na maioria das vezes, foram adquiridas de maneira precoce e imprudente.
Participar de uma conversa estruturada onde seu interlocutor não demonstre uma necessidade histriônica de expor constantemente seus pontos de vista pode ser uma experiência no mínimo inusitada, e os resultados deste encontro podem ser surpreendentes.
Interpretações são ações necessárias em quase toda conversa, porém, muitas delas acabam sendo equivocadas, pois refletem uma possível fixação estática daquele que interpreta.
O próprio Freud já nos alertava:
"Às vezes um charuto é somente um charuto".
Logo, ofertar perguntas contaminadas com interpretações psicológicas aprendidas no Instagram e no TikTok pode nos transformar em chatos que, constantemente, buscam encontrar simbolismos profundos em trivialidades cotidianas. Não existe nada mais irritante do que isso.
A maioria das pessoas é normal
Nos últimos anos a psicopatologização da vida cotidiana transformou muita gente em psiquiatras que se outorgam o direito de diagnosticar todo cidadão que cruza seu caminho: "Isso pode ser TDAH, você já procurou averiguar essa possibilidade?"; "Ela deve ser autista, o que você acha?"; "Isso me parece narcisismo, você já leu algo a respeito?".
Perguntas nem sempre são inofensivas e muitas vezes podem ser levadas demasiadamente a sério. Junior dos Santos Almeida, mais conhecido como Junior Cigano é um lutador brasileiro de Artes Marciais Mistas - Mixed Martial Arts - MMA, especialista em boxe.
Tornou-se campeão dos pesos-pesados do Ultimate Fighting Championship – UFC - em 2011, ao derrotar o então campeão Cain Velasquez, em apenas 1m04s. Sua ascensão dentro do universo do MMA foi meteórica.
Para se qualificar para enfrentar Cain Velasquez, Cigano venceu lutadores renomados, fortes e ágeis como Fabrício Werdum, Mirko Filipovic, Stefan Struve, entre outros.
Faltavam somente duas lutas para que Cigano pudesse desafiar Cain Velasquez, e a próxima seria com Roy Nelson.
Roy é um lutador duríssimo, mas distancia-se bastante do perfil desses atletas, por ser literalmente "gordinho".
Durante um documentário sobre a carreira de Júnior Cigano produzido pelo canal a cabo Sport TV, o lutador revela que foi entrevistado por um jornalista que lhe fez a seguinte pergunta:
"Júnior, sua carreira tem sido brilhante e só faltam duas lutas para que você possa desafiar o campeão mundial. A próxima delas é contra o Roy Nelson. Você não vai perder para o gordinho, vai?".
Cigano nos conta com muito bom humor que sempre encarou seus desafios com muita seriedade, mas que nunca tinha se preocupado em demasia com nenhum adversário.
Entretanto, depois da referida pergunta, confessou que até o encontro com Roy Nelson não existiu um dia sequer em que ele não tenha pensado: "Caramba, não posso perder para o gordinho! Não posso perder para o gordinho!".
Cigano ganhou a luta, e a pergunta pode até ter apurado sua atenção e concentração, mas nada garante que não poderia ter tido o efeito contrário.
Como saber?
Esse acontecimento exemplifica o poder das perguntas e o enorme cuidado que devemos ter com as palavras se não desejarmos criar problemas e preocupações onde antes só havia segurança e certeza.
E você, acredita que é um bom comunicador?
Suas perguntas têm ajudado as pessoas a pensar melhor ou perturbado a paz daqueles que convivem com você?
Marcello Danucalov
Doutor em Ciências (psicobiologia);
Mestre em Farmacologia;
Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.