A recente demissão do jornalista americano visto como conservador, Tucker Carlson, da emissora Fox News e sua repercussão chamou muito a atenção. Essa movimentação, seus possíveis motivos e consequências trazem à memória o filme Rede de Intrigas (1976), onde vemos desde os bastidores de uma emissora de TV esse tipo de movimentação. Observar tanto os acontecimentos recentes quanto aquilo retratado pela ficção pode revelar algo sobre o estado da grande mídia, e do jornalismo em específico, em nosso tempo.
Acredito que poucos observadores sérios da mídia têm respeito genuíno a ela. Aqueles mais atentos do público percebem a manipulação. Os poderosos a vêem como uma ferramenta. E dos participantes, vejo claro cinismo. Como Chesterton colocou em 1908 "...o jornalismo é popular, mas principalmente como ficção…".
É tentador pensar que os jornalistas da grande mídia se comportam como um bando coeso, todos aderindo ao mandato de uma ideologia política específica, mas vejo a realidade como um pouco mais sutil.
Grande número deles vêem sua missão como intérpretes da realidade, isto é, definidores do que é real ou não para as massas, sem perceber que eles próprios se perdem em suas narrativas. São pessoas vivendo num teatro do absurdo de criação própria. E, como acontece frequentemente, a ficção consegue condensar e dar a forma a este fenômeno. O filme Rede de Intrigas (1976) continua talvez insuperado em sua interpretação do assunto.
No filme, vemos a trama entre os que fazem a programação, os executivos e os jornalistas, na loucura auto-hipnótica que é a televisão. A história acontece nos bastidores de uma emissora, mostrando que aqueles que criam a programação da televisão não só manipulam os fatos e distorcem as percepções do público, mas também acabam por se confundir e se perder como consequência de seu próprio trabalho.
Peter Finch interpreta o jornalista Howard Beale, que diz, no meio da transmissão de seu programa de notícias, que se suicidará no programa seguinte, ao vivo. O que vemos na sequência é o uso deste evento, visto a princípio como um problema, como o início de um novo tipo de programa de grande sucesso, onde um homem relata ao público os fatos como os vê. Uma espécie de profeta louco dos dias atuais.
No meio disso, vemos a responsável pela programação, Diana Christensen, interpretada por Faye Dunaway, em um misto de intenso embate profissional e romance com o jornalista veterano Max Schumacher, interpretado por William Holden. Ambos pensam de maneira antagônica. Diana não traça limites do que seria capaz de fazer para produzir um sucesso, enquanto Max, representante da velha guarda, não consegue não perceber tudo aquilo como perverso.
Em uma cena, Max chama Diana de "humanoide", parecida com um humano mas incapaz de ser um de fato, por pertencer à geração "educada pelo Pernalonga", ou seja, pela televisão.
Chesterton disse, a respeito do jornalismo como uma forma de arte: "...ao perder-se toda a preocupação com a verdade, perde-se também a forma…". Em certos momentos me parece que ele se referia às pessoas, e não aos textos.
O roteiro de Paddy Chayefsky é excepcional. Vê-se claramente sua influência em outro grande roteirista, Aaron Sorkin, que cita o filme como uma importante influência, dizendo " …nenhum outro previsor do futuro - nem mesmo (George) Orwell - acertou tanto quanto Chayefsky ao escrever Rede de Intrigas".
Ele consegue capturar a mistura entre a ambição e loucura daqueles que trabalham diretamente no canal de TV misturada às maquinações dos conselhos administrativos e acionistas de grandes corporações. Interessante que o filme mostra ambos os grupos como removidos da realidade, mas em lugares distintos.
O roteiro narra uma variedade de situações absurdas, como os guerrilheiros revolucionários, especialmente o líder Ahmed Kahn, o qual vemos pela primeira vez em seu QG revolucionário comendo um balde de frango do KFC. No decorrer da história eles negociam com a emissora, a UBS, a produção de uma série sobre sua atividade revolucionária, completa com filmagens amadoras de assaltos. De uma forma ou de outra, essas ideias não parecem tão impossíveis de serem produzidas hoje em dia.
A a leniência dos que tomam as decisões com os revolucionários se tornou um fato banal, com abundância de amostras, como quando um âncora da CNN fazia uma matéria sobre uma "manifestação pacífica" em frente a edifícios em chamas.
Nos acostumamos com um certo nível base de absurdo que nem notamos mais. É difícil se chocar. Cada vez mais perdemos o senso das proporções. O artificial, de certa maneira, define o que é real. Somos convencidos a ver aquilo que não existe, e a acreditar que não vimos aquilo que está diante de nós, como neste comentário sobre o aumento do desemprego no Brasil: "...o desemprego sobe, mas o mercado de trabalho está muito melhor…".
Cada vez mais aquilo noticiado como fato se confunde com ficção. Como disse David Foster Wallace em 1990; o roteirista de TV não é mais aquele ser estranho que observa calado de um canto a vida acontecendo, para então transformá-la em ficção. Agora, a matéria prima do roteirista de TV é a imitação da vida vista na própria TV.
Como ele exemplifica em E Unibus Pluram, a inquietação dos opositores à Guerra do Vietnam ao se manifestarem através da TV era motivada pelo fato daquela guerra “acontecer” na TV; portanto se opor a ela na TV é se opor a ela de fato. O que realmente acontecia no sudeste asiático era um acessório àquilo que aparecia na TV. Aquela mesma geração tinha uma certa ideia fantasiosa sobre os povos indígenas que explorei em uma coluna anterior.
As imagens finais do filme, que mostram a morte do personagem Howard Beale simultâneamente a propagandas evidenciam a ironia inescapável da TV, como esta transmissão da CNN sobre a guerra na Ucrânia mostra.
No filme, Howard Beale é claramente louco, mas fala em boa parte a verdade. Na vida real, Tucker Carlson não tem nada de louco, e diz a verdade sem medo algum. Isso tornou-se um problema. Ele era o âncora de TV mais popular dos EUA no canal de notícias mais assistido, a Fox News, talvez a única grande empresa de mídia tradicional com editorial conservador. Com seu enorme alcance e popularidade, ele se tornou um ativo fundamental dentro da empresa. Ele não tinha problema algum em combater as narrativas predominantes, e na TV a cabo era o único a fazê-lo.
Em 2022, ele esteve no Brasil investigando a crescente influência do governo Chinês, e entrevistou o Presidente Jair Bolsonaro.
As teorias são diversas de por que ele foi demitido. Alguns dizem que seria devido a maneira como noticiou a infame invasão no Capitólio em 6 de janeiro e a possível fraude nas eleições presidenciais de 2020 (que se concluiu no segundo maior acordo extrajudicial da história entre a Fox News e a Dominion Voting Systems) .
Outros dizem que alegações de abusos dele com relação a uma produtora de seu programa chegaram a um ponto crítico, culminando em processos jurídicos.
Outra teoria, um tanto bizarra e improvável, é que seus comentários em defesa da fé e do poder da oração em um discurso recente incomodaram a Rupert Murdoch, dono da Fox News, que o demitiu como maneira de atacar sua ex-noiva, abertamente fã de Carlson.
No entanto, a teoria que mais me convence é de que a demissão de Carlson foi planejada há meses, consequência das lideranças do canal cederem a pressões políticas. Alguns dizem que isto indica que a Fox News, teoricamente uma emissora conservadora, pode ser apenas a “oposição fiel” ao regime, no melhor estilo Teatro das Tesouras. Não seria tão grande surpresa!
Recentemente surgiram especulações de que a Fox News vem preparando um dossier há meses, repleto de gravações que seriam usadas para efetivamente "queimar" Carlson, caso ocorra uma disputa judicial. E não seria apenas de Carlson que a emissora teria criado tal dossiê, mas também de outros membros proeminentes do canal.
Ou seja, eles supostamente mantêm arquivos com "sujeira" de seus colaboradores caso seja necessário atacá-los no futuro.
Qualquer que seja a razão, algo que certamente auxiliou sua demissão foi o fato de ele estar atento à realidade e dizer sem medo o que pensa. Durante a pandemia, ele questionou o papel das grandes empresas farmacêuticas (big pharma) em tudo que se sucedeu, em especial revelando informações constrangedoras sobre o Dr Anthony Fauci.
Fez de maneira recorrente críticas contundentes à administração Biden, e a governadores do partido Democrata. Tudo isso em um canal de TV à cabo, com enorme audiência.
A meu ver, ele era o último jornalista da grande mídia americana capaz de ver as coisas como são, e corajoso o suficiente para falar a respeito. Uma amostra disso ocorreu recentemente, quando ele disse que a mídia é um “aparato de controle", e que em boa parte de sua carreira ele colaborou exatamente com isso, e se arrepende.
O fato dele reavaliar sua posição e mudar de opinião de maneira sincera é algo incrivelmente raro na grande mídia hoje. O surpreendente não é sua demissão, mas o fato de ele ter durado tanto tempo.
Desnecessário dizer que toda a esquerda comemorou. A parlamentar americana Alexandra Ocasio-Cortez, heroína da esquerda "woke", disse claramente: "...banir das plataformas funciona…". Vale lembrar como esses personagens comemoraram a morte de Rush Limbaugh, famoso radialista conservador americano. E aqui no Brasil, seus colegas celebraram o falecimento do professor Olavo de Carvalho. Às vezes o desprezo da pessoa certa é melhor que qualquer elogio.
A demissão de Tucker Carlson revela muito sobre o estado da mídia americana, aquela que tem a atenção do mundo todo. Cada vez mais a loucura e a manipulação, visível apenas dos bastidores, como mostra Rede de Intrigas, se revela para o público. E, obviamente, aqueles instalados na realidade e que dizem a verdade incomodam. A declaração recente do próprio Tucker Carlson em sua conta no Twitter deixa isso claro.
Talvez como Howard Beale em Rede de Intrigas, a alta cúpula decidiu "matá-lo". Afinal, como no filme, ele “...se meteu com as forças primárias da natureza…” ao trazer aos olhos do público informações que talvez interferissem com grandes negócios internacionais ou manobras políticas.
O benefício financeiro de ter o âncora mais popular no programa de notícias de maior público dos EUA já não era suficiente. Mesmo com sua demissão causando uma perda enorme de audiência, talvez o custo político de mantê-lo fosse grande demais.
Em um evento anterior à sua demissão, citou algo de sua recente entrevista com Elon Musk, dizendo: "o desfecho mais provável é também o mais irônico". Resta-nos apenas especular.
Alguns dizem que Rede de Intrigas é uma sátira. Eu diria que é um retrato.
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