Fernando Pestana

Professor de Português com mais de 20 anos de experiência, autor do best-seller "A Gramática para Concursos Públicos" e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras do Porto.

Verbo sepultado?

Deve existir uma lógica em tornar arcaico o que não é

Fernando Pestana

Assim como tantos linguistas brasileiros desde a década de 1970, o linguista Sírio Possenti, em seu livro "Por que (não) ensinar gramática na escola" (2012 [1996]), também tece críticas aos ensinos da gramática normativa tradicional da língua portuguesa, usando como base a premissa de "profundo fosso" entre o que boa parte dos linguistas brasileiros denominam por "norma culta" (falada e escrita) e o que chamam de "norma-padrão", sendo esta (segundo eles) o conjunto de regras presentes nas gramáticas normativas tradicionais e aquela o conjunto de fatos linguísticos produzidos e compartilhados por usuários supostamente letrados (com diploma de nível superior) em situações mais formais de comunicação.

Diz ele:

"O que estou sugerindo é que, de fato, devemos considerar formas como 'assistir ao jogo' como arcaísmos e, consequentemente, formas como 'assistir o jogo' como padrões, 'corretas'. Simplesmente por uma razão: no português de hoje, ‘ser espectador de’ se diz 'assistir', e não 'assistir a'. (…) Se tais formas ocorrerem, ocorrerão... raramente, de preferência na escrita, e como consequência de um ensino explícito, quase como se se tratasse de formas de uma língua estrangeira. Ou seja, TAIS FORMAS SÃO a rigor ARCAÍSMOS, NÃO SE USAM MAIS." (p. 39; grifo meu)

Ok, talvez na FALA de pessoas cultas até em situações formais de comunicação, use-se espontaneamente menos a regência indireta "assistir ao filme", sobretudo em comparação com a modalidade ESCRITA. Mas daí a dizer que "não se usa mais"?!

Tal afirmação carece de pesquisa séria, o que não foi apresentado pelo linguista em momento algum do seu livro. 

Continua o linguista:

"(…) 'os exemplos de boa linguagem' são sempre em alguma medida ideais e são sempre buscados num passado mais ou menos distante, sendo, portanto, em boa parte arcaizantes, quando não já arcaicos. Certamente, embora em matéria de língua nada seja uniforme, os exemplos de boa linguagem utilizados pelas gramáticas são mais arcaizantes DO QUE OS ENCONTRADOS EM JORNAIS E NOS TEXTOS DE MUITOS ESCRITORES VIVOS DE QUALIDADE RECONHECIDA." (p. 78; grifo meu)
"(…) por que não poderia a escola acompanhar mais de perto a norma culta real, tal como ela é utilizada, por exemplo, nos jornais, que, para ficar num exemplo, JÁ ABANDONARAM HÁ TEMPO A REGÊNCIA INDIRETA DE ‘ASSISTIR’…" (p. 79; grifo meu)

No entanto, em consulta a Maria Helena de Moura Neves, em seu livro "Guia de uso do português: confrontando regras e usos" (2003: 96), quanto à regência indireta do verbo "assistir" significando presenciar (assistir ao jogo), demonstrou-se que “essa foi, de fato, a construção mais frequente (cerca de 80%)”, o que implica testificar que esse verbo ocorre apenas 20% com complemento direto, diferentemente do que assinalou Possenti

É preciso deixar também registrado que a linguista chegou a esses resultados estatísticos a partir dos usos “observados num córpus de oitenta milhões de ocorrências do português escrito contemporâneo do Brasil, que abrange textos dos tipos romanesco, oratório, técnico-científico, jornalístico e dramático, o que garante grande representatividade” (Neves, 2003: 13), o que não foi feito por Possenti.

Portanto, carece de dados comprobatórios a afirmação de que a regência indireta de “assistir ao jogo” é um arcaísmo abandonado há tempos, sobretudo em registro culto escrito, ainda que em linguagem não literária, como a jornalística.

Após análise de dados que fiz para minha dissertação de mestrado, constatei nos corpora analisados de mais de 270 mil dados que a regência indireta do verbo "assistir", em linguagem jornalística contemporânea (usada como argumento por Possenti), é bem maior do que a regência direta, o que desabona as afirmações do linguista.

Eis os dados, respectivamente:

total de ocorrências encontradas: 20.360 [100%]

assistir (VTI): 16.619 [81,62%]

assistir (VTD): 3.741 [18,38%]

Sobre a linguagem literária de mais de 20 escritores contemporâneos, como A. Mussa, M. Laub, E. Vigna, J. Tenório , L. F. Veríssimo, A. Prata, C. Evaristo, R. Fonseca, C. Tezza, C. Buarque, D. Galera, M. Aquino, M. Hatoum etc., eis os dados:

total de ocorrências encontradas: 138 [100%]

assistir (VTI): 129 [93,47%]

assistir (VTD): 9 [6,53%]

O que concluímos cotejando os dados e as afirmações do linguista brasileiro Sírio Possenti sobre o sepultamento do verbo assistir?

Deixo com vocês a resposta. 

Da minha parte, mantenho minha bandeira hasteada: fatos não se importam com opiniões ou com linguística impressionista de olhos e ouvidos. Ciência séria se faz com dados reais.