Rodrigo Barreto

Sociólogo, pós-graduado em Escrita de Ficção pela Universidade Lusófona de Lisboa, mestre em Literatura e doutorando em Estudos Românicos pela Universidade de Lisboa.

OPINIÂO

O tal cendal de Camões

Ler Machado de Assis é se lançar num oceano de possibilidades.

Rodrigo Barreto

Dia desses, convidado para ministrar uma aula sobre “Dom Casmurro”, reli o romance que, de quando em quando, quer eu queira, quer não, insiste em voltar às minhas mãos e que, lugar comum dizê-lo, a cada leitura, apresenta-me novas e antes insuspeitas camadas.

Dessa vez, no entanto, descobri algo tão sutil e perspicaz que é quase certo alguém o ter colocado ali entre minha leitura anterior e a mais recente, não sendo possível que estivesse impresso desde 1899, ano da primeira publicação do livro. 

Embora cético para fantasmagorias, creio que o próprio espírito de Machado de Assis, zombeteiro como é, talvez tenha encravado recentemente letra por letra no meu exemplar apenas para rir-se de mim

Ademais, se eu não fosse precavido quanto sou, eu seria capaz até de apostar que, na edição que dormira numa prateleira empoeirada da tua casa, cara leitora, tal passagem nem mesmo se encontra. 

Do contrário, vai ver que é mesmo como disse o Ítalo Calvino

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”

Mas, para impedir que sigas roendo as unhas, digo logo a que venho: refiro-me ao cendal de Camões, e como tu provavelmente não sabes que diabos é isso, elucido. 

Antes, porém, de falar desse cendal, é necessário darmos um passo atrás para lembrarmos juntos o capítulo em que ele aparece.

Se já leste “Dom Casmurro”, é certo que te recordarás do capítulo “Os braços”, no qual se encontra a seguinte cena: Bento Santiago está possesso com Capitu, porque ela insiste em ir aos bailes com os braços desnudos; e, segundo o enciumado marido, os homens evidentemente os olham, os buscam, os pedem e, malandra e impudicamente, até roçam neles. 

Por causa disso, ele queixa-se com Escobar, e este diz que de fato a situação não é aconselhável. Este informa-lhe, inclusive, que Sancha não sai de casa com os dela despidos.

Bento Santiago, então, aproveitando-se da concordância do outro, reclama com a própria esposa, que, depois de um gracejo, aquiesce. 

Contudo, sempre perspicaz, Capitu utilizará não um pano opaco ou fosco, mas outro meio transparente, que nem mostra nem esconde, bem ao feitio do romance – e essa escumilha, diz o narrador, é justamente como o cendal de Camões.

Apesar de ter lido diversas vezes a obra, confesso que nunca havia parado para pesquisar o que era o tal cendal, seguindo simplesmente adiante, como se fosse coisa de menor relevância. 

Mas, se isso acontece, não é à toa nem por acaso; Machado de Assis busca propositalmente esse efeito.

Em virtude de sua elegância estilística, inocentemente acreditamos que as imagens e as referências que o autor utiliza servem apenas para corroborar o que foi dito, quando, em vez de confirmarem o sentido aparente, abrem nele uma fenda profunda.

Porém, graças ao ótimo trabalho feito na edição do Clube de Literatura Clássica, na qual Rafael Domingos de Souza pôs valorosas e elucidativas notas de rodapé, pude enfim descobrir que se trata de uma passagem de “Os Lusíadas” que diz assim

Cum delgado cendal as partes cobre,

De quem vergonha é natural reparo,

Porém nem tudo esconde, nem descobre,

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, para que o desejo acenda e dobre,

Lhe põe diante aquele objeto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

A verdade é que, de cara, numa primeira leitura, conhecer esses versos não me ajudou em nada

Entretanto, num segundo instante, já tomado por uma curiosidade quase tão doentia quanto o ciúme daquele protagonista, fui atrás de entendê-los.

Pesquisando aqui e ali, descobri algo de que, não sei por qual razão, nunca tinha sido informado: Vênus, a deusa da beleza e do amor, era casada com Volcano, mas amante de Marte

Quando eu soube disso, como quem lê uma revista Caras da Antiguidade, minha cabeça explodiu, tal e qual um emoji. 

Machado de Assis, numa breve pincelada, um quase nada de palavras, não mais do que a raiz quadrada de um átimo, armava toda uma bomba, desvelando, quem sabe, o caso extraconjugal, mas apenas tanto quanto o próprio cendal ocultava da deusa seu sexo.

No capítulo seguinte, “Dez libras esterlinas”, há, ligada àquela, outra passagem memorável: 

Bento e Capitu estão diante da praia, e ele explica-lhe astronomia. No entanto, Capitu, perdida em seus próprios pensamentos, não lhe dá a menor atenção, até ele se lamentar de que ela não o escuta. 

A mulher contesta que, sim, escuta-o perfeitamente bem e diz que ele falava de Sírio, ou melhor, falava de Marte. 

Recordando-se da cena, o narrador escreve: 

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o sentido.”

Somos assim alertados para o fato de que o amante está na intenção dele, mas não necessariamente na dela

Isso porque tudo quanto sabemos de Capitu são exterioridades vistas pelos olhos de Bento Santiago, mas nunca pelos próprios pensamentos da mulher

Nessa cena, ela olha fixamente para o mar, nada além disso, mas, em razão de toda a desconfiança do narrador acerca dela, inclusive muitas vezes traduzidas em metáforas marítimas, somos conduzidos a dar como nossas conclusões que, entretanto, são dele.

Ou seja, por toda a obra, das formas mais oblíquas e dissimuladas, Machado de Assis conta-nos aquilo que emerge de Bento Santiago, mas que jamais se revela em fatos indubitáveis ou incontestes ao longo da história

O que há, ao fim e ao cabo, é um jogo entre dizer e desdizer, de afirmar para depois desmentir.

Um bom exemplo se mostra caso relacionemos o que se diz nos capítulos “A fotografia” e “O retrato”: se um é verdadeiro, o outro é falso, isto é, uma leitura conectada mostra que tais capítulos são mutuamente excludentes

Dessa maneira, as provas que pegamos numa passagem desfazem-se noutra e, assim, aquilo que provaria não prova. 

E esta é mesmo a graça de “Dom Casmurro”: o romance inteirinho é como o Cendal de Camões, que, à proporção que expõe, também acoberta.

Machado de Assis cria, portanto, um tipo muito peculiar de narrador que tanto tira quanto oferta. 

É mais ou menos como um Robin Hood que, em vez de roubar dos ricos para dar aos pobres, rouba destes para dar de volta a eles próprios num jogo de soma zero.

Exemplarmente, Bento Santiago, se tem bento e santo no nome, também tem Iago; e, como sabemos, este não fez outra coisa senão induzir Otelo a acreditar que sua esposa o traía, quando, na verdade, não havia qualquer traição

Ou será que no fundo... Machadianamente, deixo um talvez.