Professora de Língua Portuguesa há 10 anos, apresentadora da Brasil Paralelo, fundadora do Expressando Direito (Curso Prático de Português Jurídico) e do Texto Irresistível (Curso de Boa Escrita e Gramática Normativa).
Afinal, o que é, de fato, “escrever bem”? Há dias venho pensando nisso, chegando a respostas que soam ora como uma orquestra coesa, ora como o sofrível violino de um iniciante.
É curioso como certos termos são mais compreensíveis quando não conceituados, mais ou menos como constatou Santo Agostinho: “Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é o tempo, mas se me perguntam o que é o tempo, eu não sei o que é o tempo”.
Se me perguntam o que é escrever bem, eu sei o que é? Bom, arrisco-me.
A conclusão é a seguinte: escrever bem é produzir um texto que atinja o objetivo proposto explorando o máximo possível das qualidades exigidas por aquele objetivo.
Destrinchemos ponto a ponto.
Eu adoro a norma-padrão. Delicio-me quando leio um texto que a respeita rigorosa, preocupada e obsessivamente. Mas a verdade é que, sabemos, nem todo texto precisa dela.
Imagine a catástrofe se Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa torturassem seus personagens analfabetos para que falassem tudo à risca. Perderíamos a sutileza das expressões e o tutano de como veem o mundo; perderíamos, em suma, o sumo das histórias.
Autores assim não estão preocupados em respeitar ou aviltar a norma, mas em ser fiéis ao objetivo da obra: fazer o leitor mergulhar no universo daqueles retirantes, em seu sofrimento, que, em grande parte, ocorre justamente pela falta de intimidade com a as palavras. No trecho abaixo, Graciliano retrata a relação do filho mais velho com a linguagem verbal:
“Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, ao som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinhá Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra.”
Agora imagine esse menino ordenando as palavras como Ruy Barbosa. Que sentido faria?
Norma, então, não é uma qualidade exigida para o objetivo desse texto. Então, por que ele é bom? Que qualidades ostenta para tantos se curvarem à sua grandeza? Arrisco dizer: fidedignidade aos seres reais que inspiraram os personagens; sensibilidade para narrar-lhes as dificuldades; crueza para não lhes florear a dor, mas transmiti-la com a palavras tão áridas quanto a própria realidade. São, portanto, qualidades estilísticas.
Particularmente, delicio-me quando um texto respeita a norma, preocupada e obsessivamente. Mas arrepio-me até mesmo quando a aviltam com consciência, num misto de rebeldia e estilo, frutificando as possibilidades do texto.
Muito distante está um texto jurídico, por exemplo, que há de ser impecável e formal, tomando sempre o cuidado de fugir dos rococós insuportáveis sustentadores da vaidade do escritor e atrapalhadores do objetivo das peças: entregar a melhor prestação jurisdicional ao cidadão.
Objetivo diferente tem um texto como este, dentro do qual, parece-me, o elemento didático é fundamental: se meu leitor terminá-lo sem um esboço organizado do que é “escrever bem”, terei falhado miseravelmente. Aqui, ainda, devo obedecer à norma-padrão, dado o objetivo da própria coluna, o perfil de quem a acompanha e o assunto sobre o qual falamos.
Objetivo diferente tem, ainda, um conto infantil: seu pequeno leitor precisa se encantar pela história; as frases não podem ser infinitas e a abordagem não deve cobrar a maturidade que somente um adulto viveu para adquirir. Mas um bom conto para crianças também não pode tratá-las como imbecis, contando historinhas sem propósito educativo nenhum. Um senhor desafio, sem dúvida, balancear tais objetivos.
Então temos outro ponto: dependendo do objetivo textual, há qualidades as quais, quanto mais bem exploradas, possibilitarão um texto excelente.
Passou-me pela cabeça dizer que há qualidades gerais as quais qualquer autor deve buscar, como clareza, objetividade, precisão etc. Mas raciocinei melhor: há textos pensados com estratégia para ser confusos, justamente para desnortear o leitor. É o caso, por exemplo, do que vemos em A paixão segundo G.H. (Clarice Lispector) ou em Crime e Castigo (Dostoiévski). Os escritores buscam cuidadosamente a balbúrdia em certos trechos, mas ela é tão bem construída, tão obviamente intencional, que conseguir transmiti-la é um trunfo – é a garantia de mergulharmos na cabeça das personagens, enxergando seu desnorteamento.
Voltamos, assim, ao ponto inicial: escrever bem é produzir um texto que atinja o objetivo proposto explorando o máximo possível das qualidades exigidas por aquele objetivo.
Ainda não é um conceito fechadíssimo, convenhamos: o mapeamento rigoroso desse objetivo e de quais são as qualidades exigidas por ele ainda guarda considerável mistério. Mas tentar ir além disso, parece-me, é como tentar definir o tempo – pode atrapalhar mais do que ajudar.