Elton Mesquita

Elton Mesquita é escritor, tradutor e roteirista na Brasil Paralelo. Seus textos fazem valer sua crença de que tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente.

OPINIÂO

O Que A Noite Não Mata (Parte Um)

O rosto do homem era uma máscara.

Elton Mesquita

Do céu sem nuvens, o olho atento e inescapável do Sol acompanhava a lenta jornada pela estrada. As coisas tremiam à distância no calor do meio-dia: pedras, pó, poucas plantas indistintas na paisagem fosca e sem sombras que, vista através das lágrimas, se estilhaçava na incerta miragem de uma visão fantasmagórica.

O homem estimou a hora do dia pela altura do astro e decidiu parar e descansar. Apoiando a axila no cajado (um galho de freixo retorcido cujo castão era um nó bruto de madeira), esticou os pés alternadamente, dando pequenos chutes para diante e massageando as panturrilhas. Então bebeu do odre que trazia à cintura, e após um momento de hesitação jogou água no rosto e nos cabelos.

Contava com água para breve. A última semana fora um só longo dia repetido à exaustão, sem mudanças ou surpresas: o Sol o acompanhava por toda a manhã até perto do final da tarde, quando então ventos fortes sopravam, levantando poeira, obrigando-o a proteger os olhos com as mãos. Chumaços de nuvens escuras colidiam vagarosamente no céu borrado de cinza, difusos clarões lampejando nos pesados ventres negros. 

Então a chuva. Gotas gordas estalando em moedas líquidas que escorriam pela pele, descendo pelas pernas, abrindo buracos na terra fofa e na poeira, deixando atrás de si o primeiro cheiro bom de petrícor.

O homem estudou o caminho. A maior parte do tempo seguia pelo ermo, encontrando algumas estradas que, pelo tamanho e estado de conservação, diziam o que precisava saber sobre as cidades próximas. A estrada em que agora estava compensava a estreiteza com um bem-conservado calçamento de pedra, e ele viu a passagem freqüente de carruagens nas marcas de rodas largas e espaçadas impressas na areia entre as pedras. E à margem, em uma estela decorada ele leu: 

“PARA O SÉTIMO PORTÃO”.

Aproveitando a pausa, levou a mão dentro da clâmide na altura do peito e apalpou o pequeno volume. Uma promessa de sorriso adejou em seus lábios mas não se cumpriu, e seu rosto assumiu uma expressão concentrada e tensa.

Ele se lembrou.

O vento levantava a areia e a arremessava às mancheias em sua direção. Ele cerrava os olhos, apertava a boca e seguia tateando à frente com o cajado sem ver o caminho, protegendo o rosto da poeira com o braço.

O calor e a fadiga mascaravam um pouco a dor nos pés. Um pequeno conforto, a ser pago quando viesse a noite e ele parasse para descansar o corpo, no trato firmado consigo mesmo de como sofrer ordenadamente: de dia, seguia em marcha puxada a passos largos, mas levava a mente vazia, dispersa na paisagem, absorta no esforço e no calor obsedante. À noite, repousava o corpo, mas a mente trabalhava madrugada adentro feito pedra de moinho, lentamente se erodindo contra o problema da existência.

O vago plano de procurar emprego nos estábulos de alguma cidade dissolvera-se junto com o dinheiro e a comida. Era herói, matara uma besta de lendas, mas tinha a consciência suja de um crime inominável e nem sequer cometido. Era príncipe, mas errava como um mendigo pelo mundo. Era jovem, mas seguia a custo pelas trilhas feito um velho, sobre pés estropiados que lhe dificultavam progressivamente o caminhar, como se com intenção maligna procurassem facilitar o destino profetizado pelo deus, venerado entre todos, que o arrancara displicentemente da estrada reta para jogá-lo por caminhos tortuosos, condenando-o a uma existência mais incerta que a dos cães

Longas horas madrugada adentro ele seguira o predeterminado percurso das estrelas, considerando a última ação libertadora de que dispunha e cuja mera possibilidade o fazia adiá-la indefinidamente.

O homem caminhou por todo o dia até o final da tarde, quando a estrada começou a se elevar em direção à passagem pelas montanhas. Já não fazia calor. Nuvens cinzentas e baixas prenunciavam chuva para breve e um vento frio soprava pela estrada.

O céu rugiu. Um lento e derramado ribombar ecoou entre as nuvens como o ronco encrespado de um gato grande, e foi respondido pelos grunhidos famintos do seu estômago.

Uma pesada cortina d’água se abateu sobre o mundo. O homem se deixou ficar parado, estúpido de cansaço, com as costas um pouco arqueadas para trás e os ombros pensos, recebendo água no rosto. Depois de algum tempo endireitou as costas, fincou o cajado no chão e continuou subindo pelo caminho cada vez mais íngreme, seguindo mais devagar e hesitante à medida que a força da enxurrada aumentava.

Não havia abrigo à vista. Teria que seguir em frente, esperando que no topo da passagem as formações rochosas pudessem protegê-lo da tempestade. Ele olhou para o vale mais abaixo. Um burrinho tolerava a chuva, impassível, de cabeça baixa, mastigando tufos ralos do maqui. Algumas crianças nuas corriam e pulavam por entre as casas retangulares de adobe dos lavradores. Mais além um poço, um canteiro de ervas suspenso num jirau. 

Olhando para o alto, ele viu a coroa negra das montanhas. O vento gemia escoiceando entre as rochas e o rumor vindo do alto ficava cada vez mais próximo à medida que o homem subia. A enxurrada agora corria em desimpedida torrente, ameaçando fazê-lo deslizar e rolar na lama até lá embaixo, e ele se viu forçado a prosseguir rastejando de gatas, sentindo a firmeza do terreno à frente com a mão e o cajado. A água e o barro respingando cegavam-no, seus ouvidos doíam.

Ele decidiu ficar onde estava e esperar. Sentia-se cansado demais, e não confiava nem em si nem no terreno de barro mole, de onde a pouco e pouco pedras se soltavam e rolavam pelo caminho até o fundo do vale. Sentado de costas para a chuva, voltado para o lugar de onde viera, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça baixa entre as pernas, ficou olhando sem ver enquanto o chão de barro se esvaía ladeira abaixo.

Uma faísca lampejou e sumiu sob a capa de água turva. O homem se atirou sobre o objeto e sentiu a picada de alguma coisa que se enterrou profundamente na polpa macia da palma da mão direita. Ele urrou de dor, depois de raiva. E um longo rugido rolou pelo céu em resposta, ecoando pelas pedras e entre as nuvens. Ele trouxe a mão ferida para junto do corpo, e após contemplar serenamente as fitas sinuosas de sangue escorrendo, deu um suspiro e puxou o broche. Era uma jóia nova, de ouro ainda polido, mas bastante machucado. Mostrava um gigante recostado em algumas rochas sendo cegado por uma longa lança sustida por dois homens. De bom gosto, boa feitura, como os que ele via em casa. Ele puxou um pedaço da clâmide, de onde cortou uma tira de tecido, e com ela enfaixou a mão.

Aos poucos a chuva enfraqueceu, enfim parou de todo. Após vasculhar a lama com o cajado e se convencer de que não havia mais nada de valor para ser achado ali, o homem prendeu o broche na clâmide e se levantou para recomeçar a caminhada. Uma fraca luz amarelada se filtrou de entre as nuvens, anunciando a chegada do anoitecer para dali a uma hora.

Ele seguiu em marcha puxada até chegar ao cimo escuro da montanha, onde um caminho serpeava entre as longas rochas que, deslocadas em antigos tremores de terra, apontavam desencontradas para o céu. Ali decidiu parar, recobrar o fôlego e encher o cantil nos nichos escavados nas rochas, gretas erodidas pelo tempo onde grossos veios de água corriam e se depositavam.

Quando levava a mão enfaixada ao odre um homem apareceu do meio das pedras, pulando e patinando na lama a cada aterrissagem, mais escorregando que correndo estrada abaixo a toda velocidade. O estranho, um homem de barba negra rala, calvo, com um estômago redondo sobre pernas franzinas, passou veloz, sem dar tempo de perguntar nada; seguiu caindo, se ralando nas pedras miúdas, erguendo-se e continuando sem olhar pra trás. Sumiu numa curva e então veio o grito:

— Volte! Volte daí!

O homem sacou a espada e com um movimento rápido enrolou a ponta da capa no braço esquerdo, que então levantou para diante à maneira de um escudo.

Salteadores. Ele não os temia, era um soldado lúcido e bem treinado e sabia que bandidos de estrada eram no mais das vezes gente desesperada, que agia por impulso e sem organização, brandindo armas precárias, mal manuseadas. Seria um bom exercício para as juntas que ele já sentia enrijecer.

Ele prosseguiu lentamente, passando por entre os blocos de rocha entulhados, subindo e descendo por eles como se fossem degraus, entranhando-se cada vez mais pelo caminho recamado de sombras até chegar a um ponto em que o terreno se tornava um declive.

O vento suplicava e zombava às suas costas. E ele ouviu outra coisa por trás do vento: um som engasgado e áspero, uma espécie de chiado; ataques ritmados de ar soprado por alguma passagem estreita e úmida. Perto. Então o fedor o atingiu, fazendo-o cobrir o nariz com o braço protegido. Cheiro forte de sangue velho, carniça e excremento.

CONCLUI NA PRÓXIMA COLUNA