Fernando Pestana

Professor de Português com mais de 20 anos de experiência, autor do best-seller "A Gramática para Concursos Públicos" e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras do Porto.

Ensino de Língua e Cidadania

Toda ascensão sociocultural passa pelo acesso e refino promovido pela boa educação.

Fernando Pestana

O ensino de língua materna visa à cidadania. Guarde esta frase.

A cidadania, isto é, o "conjunto dos direitos e deveres civis, políticos e sociais dos cidadãos, ou dos mecanismos para o estabelecimento e garantia desses direitos" jamais se concretiza quando um cidadão não tem acesso a uma educação de qualidade — e um dos elementos essenciais que constituem tal qualificação é o ensino da língua materna (em nosso caso, a Língua Portuguesa).

Não é por nada que a escola tem uma grande responsabilidade no cumprimento dessa missão, pois cabe a essa instituição corrigir e nivelar diferenças socioculturais, permitindo aos jovens e crianças pleno desenvolvimento linguístico e cultural para que tenham mais oportunidades de serem bem-sucedidos em sua vida pós-escolar.

Quanto ao ensino de língua, há três princípios basilares que competem à escola: ensinar a importância da interação comunicativa (oral e escrita); estimular o apreço pela literatura e pela gramática; e ensinar a norma-padrão com as demais variedades linguísticas

Esses pontos certamente contribuirão para o desenvolvimento e plenitude linguística do aluno.

A interação comunicativa (oral e escrita) passa pelo ensino da leitura e da escrita. A autonomia dum cidadão começa justamente por aí: saber ler e interpretar textos e saber produzir textos claros. 

Quando se ensina o aluno a ouvir, a ler, a argumentar, a entender quando e como se expressar, ele se torna um cidadão competente do ponto de vista comunicativo. Saber ler e escrever: a independência do aluno depende disso.

Não se pode negar o legado literário deixado por inúmeros escritores consagrados no cânone da alta literatura, conhecidos como clássicos

Neles se apresentam todas as dimensões humanas, que têm um papel importantíssimo na formação intelectual do aluno. 

Ler fábulas, contos, crônicas, romances e outros gêneros textuais/literários é obrigação de todo professor e dever de todo aluno, pois as gerações futuras dependem de cidadãos que conservem e valorizem o que de melhor produziram as antigas gerações em prol do desenvolvimento da humanidade. 

Quanto ao ensino da gramática, é essencial que os alunos entendam a anatomia da língua: assim como um estudante de Medicina precisa reconhecer e classificar todas as partes do corpo humano para entendê-lo melhor, assim um cidadão precisa conhecer a gramática da sua língua, a fim de explorar todas as potencialidades que ela oferece — afinal, quanto mais se entende a gramática em seus níveis fonológico, morfológico, sintático, léxico e semântico, mais recursos pragmáticos e estilísticos ficam à disposição do usuário da língua.

A escola deve mostrar ao aluno que a língua natural (aprendida antes e fora do ambiente escolar) é legítima, mas é só uma das variedades existentes, uma vez que a língua muda a depender de fatores geográficos, sociais, situacionais, etc. 

Todas essas variedades devem ser respeitosamente abordadas em sala, tirando da cabeça do aluno qualquer resquício de preconceito linguístico. 

No entanto, o papel mais importante da escola é ensinar aquilo que o aluno não sabe: a variedade de prestígio social usada sobretudo na escrita, a norma-padrão. 

É com o conhecimento dessa norma que se formará um cidadão capaz de ler textos em registro culto escrito e produzir textos nesse mesmo registro, demonstrando um alto grau de letramento e cultura

Mais do que isso: para ler e, sobretudo, escrever bem, é preciso também dominar esse registro culto escrito, ensinado nas gramáticas normativas, o manual da norma-padrão. 

Por isso, assim como não se pode ter preconceito contra as variedades não cultas, também não se pode demonizar o ensino sistemático da norma-padrão, como fazem alguns — afinal, um dos benefícios/consequências do aprendizado dessa norma é a maior possibilidade de entrada em certos ambientes socioculturais e socioeconômicos de prestígio, os quais se valem normalmente da variedade culta em sua comunicação oral e escrita.

Não existe, portanto, cidadania sem uma sólida formação escolar que leve em conta, pelo menos, os fatores mencionados acima: o cidadão que domina a sua língua (mais ainda: a sua língua de cultura) é um indivíduo autônomo e capaz de mudar sua realidade. 

Sim, o ensino de língua materna visa à cidadania.