Doutor em Neurociências, é palestrante, escritor, autor e organizador dos livros "Pedagogia do Fracasso" e "Pedagogia do Sucesso" (volumes 1 e 2) publicados pela editora Ampla.
Baseado nos relatórios do Centro de Pesquisa sobre Epidemiologia de Desastres (CRED), nas últimas duas décadas, os desastres naturais mataram mais de 1,3 milhão de pessoas e deixaram outros bilhões de pessoas impactadas de alguma forma por esses fenômenos. Inclusive, este que vos fala, integra um destes bilhões de afetados.
Um breve relato. Em janeiro de 2022, devido às fortes chuvas, várias ruas da cidade onde morava (Florestal-MG) ficaram alagadas, necessitando abandono das casas de parte da população.
Em pouquíssimo tempo, o que parece ser apenas uma chuva forte, vira o alagamento de locais que simplesmente não imaginamos que poderiam ficar alagados.
Meu pai, que estava tranquilo, descansando no sofá, de férias assistindo Netflix, saiu de um “Fique tranquilo, não vai dar nada, não” para um, “Chama o Henrique la, ta demorando demais para sair” em questão de menos de menos de 2 horas.
Quase que instantaneamente, vimos a água chegando, vizinhos correndo, tentando usar de caminhões para retirar pessoas e objetos de maior valor.
Nesse período, vi vários deles, amigos e colegas sendo solidários, oferecendo-se para ajudar a levantar móveis, retirar pessoas e informar sobre a gravidade da situação.
Ao sair de casa, a água estava acima do meu joelho. Dava para ver desde mato, pedaços de cerca, até aranhas no meio de uma água marrom de tanto barro.
Por sorte, nenhuma pessoa perdeu a vida nesse relato biográfico. Para ser justo, é necessário destacar a boa atuação do poder público no local.
Quando estava monitorando um ribeirão que corta a cidade às 2 da manhã, lembro de me encontrar com o prefeito da cidade, usando seu carro particular, sozinho fazendo a mesma atividade. Acho que este tipo de cuidado faz a diferença quando bate o aperto.
Necessário destacar que, inevitavelmente, esse acontecimento interferiu na minha vida e de várias pessoas da cidade. Na época, estava prestes a concluir o Doutorado, finalizando o processo de escrita.
Durante os poucos dias de enchente, diminui muito meu ritmo de trabalho, pensando na situação que estava passando e mesmo na possibilidade de surgir maiores agravantes, pois simplesmente não dava para saber quando tudo isso iria acabar.
Meses mais tarde, conclui a defesa sem maiores problemas, contudo, ao olhar para o cenário dos nossos amigos do Rio Grande do Sul, parece ser necessário destacar que o desafio enfrentado por eles é incomparável.
Até o momento, temos confirmado cerca de 145 vítimas no Estado e mais de uma centena de desaparecidos. Esse fenômeno terá um enorme impacto na sociedade. E, como em qualquer outro, o âmbito educacional não permanece imune a essa tragédia.
Apenas avaliando o cenário educacional, segundo boletim publicado pelo governo do Estado neste sábado, dia 11 de maio de 2024, ao todo, cerca de 1028 escolas em 243 municípios foram afetadas de algum modo pelas fortes chuvas. Destas escolas, 528 foram fortemente danificadas.
Esse número representa uma parcela significativa dos estudantes da educação básica do estado do Rio Grande do Sul, equivalente a mais de 40% do total de escolas da Rede Estadual, com 358 mil estudantes afetados pelas enchentes.
A notícia menos desagradavel no meio tudo isso é que, gradativamente, os estudantes estão passando a retornar às escolas.
Dos 358 mil afetados, 149 mil retornaram às atividades. Porém, nas áreas mais afetadas ainda não há previsão para o retorno.
Ainda segundo o boletim, áreas como “Porto Alegre (1ª CRE), Estrela (3ª CRE), Canoas (27ª CRE) e Gravataí (28ª CRE), ainda não há previsão para o retorno das aulas”.
Toda esta paralisação provocada pelas enchentes trará fortes prejuízos para à população gaúcha.
Prejuízos estes que passam pelas mais diferentes esferas. Os efeitos dos desastres naturais não se limitam às vítimas diretas, representadas pelo número de mortos e feridos.
Caso o restante da sociedade civil, bem como o Estado, virem as costas para o Rio Grande do Sul, é bem provável que os diversos indicadores (incluindo os de bem estar, econômicos, saúde e educação) sejam afetados no curto, médio e longo prazo.
Não faltam evidências demonstrando como eventos como esses podem proporcionar prejuízos imediatos e persistentes ao redor da comunidade.
Em um estudo publicado na revista International Journal of Disaster Risk Science, foi identificado que o número total de pessoas afetadas pelas enchentes promove a diminuição significativa da taxa de crescimento anual do PIB per capita.
De maneira análoga aos problemas econômicos, é possível citar os problemas de saúde que ultrapassam as lesões e óbitos.
Desastres naturais como esse ocorrido no Sul estao associados ao aumento de problemas psicológicos ocasionados pelo aumento da taxas de ansiedade, depressão, agressividade, insônia, suicídio alem do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).
Apenas como exemplo, tomarei alguns efeitos do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O TEPT é uma espécie de distúrbio psicológico que surge em pessoas que tiveram algum contato com experiências adversas e traumáticas. Entre os fatores capazes de desencadear o TEPT estão violências, abusos sexuais, acidentes, mortes e os mais diferentes tipos de desastres naturais.
Neste exato momento surgem notícias de que a população do Rio Grande do Sul está enfrentando praticamente todos estes problemas capazes de desencadear a TEPT em diferentes frentes.
Milhares de pessoas perderam suas casas, familiares, outras foram vítimas de abusos sexuais em abrigos, há relatos de áreas sendo tomadas pelo crime organizado com casas sendo saqueadas entre tantos outros prejuízos que aparecem todos os dias através das mídias sociais e meios de comunicação.
Importante lembrar que, mesmo as pessoas que estão atuando no resgate das vítimas, estão enfrentando estes desafios.
Entre os sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático é possível citar desde uma elevada ansiedade, reforço de emoções negativas até uma excitabilidade exagerada.
O aparecimento de psicopatologias está inevitavelmente associado a prejuízos nas funções executivas e, por consequência, ao aprendizado.
Parece difícil imaginar que, no meio de todo este cenário, o aprendizado de crianças, jovens e adolescentes irá ficar incólume com a normalização das aulas.
Alguns estudos avaliaram especificamente o efeito de enchentes no aprendizado. Um deles, publicado na revista internacional The Journal of Developing Areas em 2020 demonstrou o efeito negativo das inundações no aprendizado de estudantes tailandeses.
Como resultado, o estudo identificou que os estudantes que vivenciaram enchentes perderam desempenho em praticamente todas as matérias (Matemática, Thai, Ciência, Inglês) com exceção de Estudos Sociais. Difícil imaginar um resultado diferente.
Espero que tragédias como essa sirvam de alerta para reformulações drásticas no planejamento de políticas públicas do Estado brasileiro.
Ano sim, ano também, identificamos regiões sofrendo com excesso e falta das chuvas, às vezes em poucos meses. No seguinte, tudo volta ao normal e de tempos em tempos, outros tantos perdem o futuro em meio a este caos.
O retorno das aulas será apenas o início de um longo processo de ajuda e assistência que a família e a comunidade escolar devem assumir para si.
É imprescindível que toda comunidade saiba receber e ajudar as vítimas diretas e indiretas dessa tragédia.
Essa coluna semanal deseja toda solidariedade às vítimas do Rio Grande do Sul, espero que se recuperem rapidamente desta catástrofe.
Todos aqueles que abrem mão de suas profissões para ajudar as vítimas dessa catástrofe devem ser enaltecidos frente a incapacidade do Estado de proteger os mais vulneráveis.
Como forma de ajudar as vítimas dessa tragédia, toda remuneração recebida pelo autor através dessa coluna semanal, será doada às vítimas do estado.
Deus interceda por vocês.