Henrique Simplício

Doutor em Neurociências, é palestrante, escritor, autor e organizador dos livros "Pedagogia do Fracasso" e "Pedagogia do Sucesso" (volumes 1 e 2) publicados pela editora Ampla.

Como pais estão perdendo os filhos para ideologias políticas?

muitos pais desconhecem o propósito daqueles que ensinam seus filhos

Henrique Simplício

Recentemente, assisti  a uma entrevista do lendário lutador russo, ex-campeão do peso leve do UFC (maior torneio de artes mistas do mundo), Khabib Nugamenov

Na entrevista, Khabib foi perguntado pelo apresentador Patrick Bet-David sobre o papel dos pais na vida dos filhos

De maneira resumida, a pergunta do entrevistador visava identificar a opinião do lutador sobre o papel diferencial dos pais no cuidado dos filhos

Vale lembrar, que Khabib teve em  seu próprio pai, o mestre de sambo Abdulmanap Nurmagomedov, seu maior professor, mentor e técnico ao longo de sua vida. 

Seu pai não só acompanhou a educação de Khabib, como também foi o principal responsável pelo treinamento e preparação para aquilo que se tornaria sua carreira. 

Infelizmente Khabib perdeu seu pai, meses antes de sua última defesa de cinturão, pouco antes de anunciar sua aposentadoria do esporte.

Khabib aposentou-se invicto em uma das categorias mais competitivas da história do MMA, o peso leve. Mas, sem perder o foco, pois este é um texto sobre educação, voltaremos à pergunta destinada ao lutador: qual o papel dos pais na educação dos filhos?

O lutador russo iniciou sua resposta pela escola. Khabib ofereceu alguns direcionamentos que nos ajudam bastante a entender os desafios do problema educacional do ocidente, incluindo o Brasil. 

Segundo o russo, todos os dias, as crianças e adolescentes dormem cerca de 8 horas por dia, além de passarem quase o mesmo tempo dentro da escola (ao tomar como referência o ensino integral). 

Ou seja, aplicando matemática básica, compreendemos que cerca de dois terços do dia dos filhos ocorrem sem o contato direto com os pais.

Essa ausência de contato acaba levando não apenas a um certo distanciamento entre pais e filhos, típico de quem convive com uma agenda apertada no mundo do trabalho. 

Paralelamente, muitos pais desconhecem o propósito daqueles que ensinam seus filhos. Parece óbvio, mas é importante lembrar que, como em qualquer lugar da sociedade, Khabib afirma “há pessoas malucas que trabalham nas escolas”. 

Pois bem, essas pessoas podem ser as referências diretas dos seus filhos ao longo da vida sem que seu filho, ou mesmo você notem de onde provêm as ideias que os guiam.

Khabib afirma que muitos pais não conseguem conversar mais de 5 minutos com o professor da escola, mas esperam que seus filhos passem horas do seu dia sendo educados pelos mesmos professores com quem os pais não conseguem sustentar o diálogo

Isso poderia explicar como, muito tempo depois, quando os filhos completam cerca de 16 anos, os pais desejam que seus filhos se comportem como eles próprios, contudo, agora, os filhos aprenderam a se comportar e reagir como pessoas com mentalidades totalmente distintas e, em alguns casos, totalmente avessas ao que os pais gostariam. 

Embora muitos possam se dar por satisfeitos com a explicação do lutador russo sobre o choque de perspectivas existentes entre escola e família, vamos nos aprofundar mais nessa discussão para entender um pouco mais sobre os desafios do cenário educacional brasileiro

Afinal, alguém poderia apontar com razão: mas qual o problema do estudante aprender conhecimentos distintos por parte do professor? Ou qual o problema em receber influências distintas? 

O objetivo do ensino não é justamente o de promover informações, conhecimentos e ideias que não seriam trazidas espontaneamente no ambiente familiar? 

A resposta a estas e outras perguntas aparecerá na próxima etapa.

Anatomia da crise

Esta reflexão, apontada pelo lutador russo é excelente para avaliarmos o papel do ensino na vida dos estudantes

Ela expressa um lugar comum na vida de muitos pais. Durante anos, famílias inteiras depositam sua fé no processo regular educacional oferecido por escolas públicas e privadas. 

Quase como a crença de que o carro irá funcionar porque foi feito para isso, esses pais acreditam que a escola irá educar seu filho

Estes pais acreditam nesse propósito porque, a princípio, é função da escola transmitir conhecimentos e conteúdos de qualidade para os alunos, independente de suas crenças, valores e perspectivas políticas das famílias dos estudantes, correto? 

Afinal, para que mais serviria uma escola? Infelizmente, preciso dizer ERRADO. Não me entenda mal, concordo plenamente que a escola deveria dar atenção prioritária a estes objetivos. 

Contudo, sinto ser eu a ter que trazer más notícias. Parte significativa dos teóricos e profissionais da educação no país não acreditam que entre os objetivos mais importantes da escola esteja o de transmitir conhecimentos básicos, informações atualizadas e capacitar estes estudantes para alcançarem melhores posições no mercado de trabalho.

Esse raciocínio não é corroborado só pela minha experiência, mas por dados. Vamos a eles.

Em pesquisa realizada pela Unesco (2004), foi identificado que apenas 8,9% e 16,7% dos professores brasileiros respectivamente consideravam que entre os objetivos mais importantes estaria o de "transmitir conhecimentos básicos" e "transmitir conhecimentos atualizados e relevantes" para os estudantes. 

Além disso, apenas 8,3% destes mesmos professores consideravam que entre os objetivos mais importantes da escola está o de "formar para o trabalho".

 Enquanto uma parcela muito significativa destes professores não se convence da necessidade de transmitir conhecimentos básicos, atualizados para capacitar os alunos para o mercado de trabalho,  91% destes mesmos professores têm grau de concordância alto ou muito alto com a ideia de que é papel do professor "desenvolver a consciência social e política das novas gerações"

Outros 60,5 % acreditam que entre os objetivos mais importantes está o de "desenvolver a criatividade e o espírito crítico" e 72,2% deles acreditam que o objetivo mais importante da educação deve ser o de  "formar cidadãos conscientes".

Esses resultados nos revelam alguns problemas no modo de compreender a educação e a sociedade

O primeiro deles seria o de se perguntar como é possível alcançar essa consciência social  e crítica sem conhecimentos básicos e atualizados? 

Muitos professores acreditam na ideia de que estão formando cidadãos conscientes e críticos quando na verdade estão apenas transmitindo os seus próprios valores morais e políticos

Vamos a alguns resultados que podem pegar de surpresa os mais desavisados.

Embora o Brasil esteja entre as 10-12 maiores economias do mundo, com um gasto educacional via PIB considerável, o país está entre os 25% piores países em desempenho acadêmico na matemática

O cético poderia ainda perguntar: “Mas o que isso implica em termos práticos”?  Segundo os dados do PISA, 73% dos estudantes brasileiros não passam do nível 2 (de 6) no desempenho acadêmico matemático

Isso significa que mais de dois terços dos estudantes brasileiros não conseguem fazer tarefas básicas como converter moedas, comparar distâncias, avaliar adequadamente um gráfico, entre outras limitações.

Nos países da OCDE esse valor é bem menos da metade dos brasileiros (31%). Apesar desse desempenho, o Brasil também está entre os mais ansiosos na disciplina, também conhecida  pelo termo ansiedade matemática

Esse resultado, indica que os estudantes brasileiros expressam uma certa aversão ao se deparar com atividades matemáticas, o que coloca obstáculos adicionais para o ensino da matéria por parte do professor. 

Tomando como referência as áreas de linguagem e ciências, a coisa vai mais ou menos pelo mesmo caminho. Estamos atrás em todas as disciplinas quando comparamos o desempenho educacional brasileiro com a média dos países da OCDE. 

Com estes resultados, fica difícil de afirmar que é possível desenvolver estes conhecimentos críticos sem ao menos dominar conhecimentos básicos para interpretar gráficos e tabelas

Uma outra questão que parece importante destacar é o problema que existe nas tradições que tentam operacionalizar o conceito de pensamento crítico. 

Muitas escolas possuem um "pensamento crítico para chamar de seu". Desta forma, toda vez que uma escola se depara com uma informação que não valida sua própria tradição, ela sempre poderá alegar que aquele conhecimento não foi crítico suficiente. 

Um exemplo pode nos ajudar a compreender essa questão. Na grande maioria das vezes que vi profissionais vendendo que estão propagando conhecimento crítico, recebi muito mais uma certa visão de mundo muito bem delimitada, às vezes bastante politizada e ultrapassada, do que um conhecimento realmente original que abrisse oportunidades para aprender mais sobre o mesmo assunto. 

Em resumo, o que quero apontar é um certo cuidado que me parece ser necessário quando pais se deparam com alguém que afirma que o que está fazendo é ensinar conhecimento crítico a seus filhos

A transmissão de conhecimentos básicos e atualizados me parece mais razoável em um país onde 70% dos estudantes não possuem domínio básico da matemática do que promessas abrangentes, não tão bem formuladas.

Um segundo problema ocasionado pelas más prioridades dos profissionais de educação consiste na hiper valorização dos aspectos políticos dentro do ambiente educacional

Ainda segundo o levantamento da OCDE, 64,5% dos professores têm grau de concordância alto ou muito alto com a ideia de que o "professor deve ter consciência de que seu papel é político"

Infelizmente, o ambiente educacional está repleto de teorias políticas, proféticas e teleológicas. Não raramente, essas teorias vendem aos alunos e a comunidade escolar que já sabemos o desfecho da história e qual o melhor caminho a ser seguido através da política. 

A crença nessas teorias fornece aos alunos e professores a falsa sensação de que eles conhecem tudo aquilo que é bom ou mau, certo ou errado. Basta enquadrar em uma certa consciência crítica que dorme abraçada com uma militância.  

Como consequência, se eles já sabem o que é melhor na história, basta agora, trabalhar para fazer com que isso aconteça

Essa falsa sensação de confiança na predição da história cai como uma bomba em um jovem cheio de certezas que não raramente vê muito pouco seus pais.

Muitas vezes, as opiniões dos pais e da família são vistas por filhos de 16 anos como simples obstáculos ou desvios de percurso em nome de um conhecimento vendido como consciência crítica. 

Infelizmente, parte das teorias educacionais se fundamentam em uma espécie de radicalismo certeiro capaz de consertar o futuro. 

Muitos professores acreditam mesmo que a educação deve-se ater ao papel de conformar a sociedade para uma proposta de mundo melhor que emergirá através da política. 

Os estudantes seriam mais uma engrenagem nesse processo que inclui a catequização e, mesmo em alguns casos, a supressão da família.

Necessário dizer que estas ideias não surgiram apenas de forma espontânea por parte da comunidade escolar brasileira. 

Elas são encontradas e difundidas através de um dos autores mais influentes não apenas na educação brasileira mas na educação mundial: o patrono da educação brasileira, Paulo Freire.

Paulo Freire é talvez um dos maiores exemplos de autores que negam o papel transmissional do conhecimento escolar

Em uma de suas obras mais citadas, Pedagogia da autonomia, Freire chega a dizer que “ensinar não é transferir conhecimento”, ao mesmo tempo que institui como uma obrigação do educador transmitir seus posicionamentos e valores políticos na educação

Essa ideia encontra-se difundida em diversas obras de Freire, incluindo Pedagogia do Oprimido e entre outras. Observem alguns trechos extraídos de suas obras. 

“Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de transferir conhecimento”. (Freire, Pedagogia da autonomia)
“Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.
Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política”. (Freire, Pedagogia da autonomia)

A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida. Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma “morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida.(Freire, Pedagogia da autonomia)

Como as ideias têm consequências, é possível identificar que as passagens de Freire refletem na realidade de muitos professores

Não raramente, professores que se atêm ao conteúdo escolar programado tentando passar conhecimentos e informações relevantes para os alunos sem entrar no espectro da política ou orientação partidária, são vistos pela comunidade escolar sob ares de desconfiança, suspeição e, em alguns casos, até retaliação por parte dos demais

Não raramente esses professores são caracterizados por “neoliberais, que fomentam um aprendizado mecânico e passivo que aliena as próximas gerações. 

Já, em contrapartida, aqueles profissionais que direta e indiretamente se engajam em lutas políticas e sociais, adotando expressões mais politizadas e socializantes e críticas (mais alinhadas a determinados partidos políticos), ganham pontos de reputação com os demais

Quase como em um cartão fidelidade, estes profissionais da educação, não raramente medem sua qualidade em função da quantidade de expressões e posicionamentos alinhados à ideologias políticas presentes no cenário educacional.

Em um cenário como esse, o que resta às famílias que só desejam que seu filho aprenda para que obtenha um futuro melhor através do ensino?

O papel do ensino e a transmissão de conhecimentos

O cenário apresentado revela um panorama educacional perigoso no país onde ensino, famílias, professores e principalmente o estudante saem prejudicados. 

Ao avaliar o papel das instituições familiares no país, parece ser necessário dizer que os pais precisam participar de forma mais ativa do ambiente escolar de seus filhos. 

Boa parte da politização do ambiente educacional, descrito mais acima tanto pelo lutador russo, como pelos dados e mesmo pela experiência diária de diversos profissionais em ambientes escolares, ocorre em grande parte dos casos através do absoluto distanciamento familiar da vida educacional dos seus filhos

Não me parece haver nenhum problema em tentar promover conhecimentos mais abstratos e abrangentes. O problema é quando vendem isso sem conteúdo, ignorando a importância de conhecimentos básicos e atualizados.

Se, para algumas famílias, a má condição financeira opera como uma barreira para dar a devida atenção aos filhos após o expediente de trabalho; para outras, essa atenção parece ser simplesmente sonegada ou colocada em segundo plano. 

Muitas famílias ainda não conseguem identificar as limitações do sistema educacional brasileiro que, como apresentado através dos dados do PISA, muitas vezes colocam em risco o aprendizado, a perspectiva de vida e a adaptação ao mercado de trabalho das próximas gerações. 

Pelo lado do ensino, é necessário destacar que, tanto Freire, quanto algumas das perspectivas educacionais reinantes no ambiente escolar brasileiro nos colocam em uma encruzilhada

Por um lado, o professor não pode transmitir conhecimentos mas deve transmitir valores políticos

Por outro, deve-se realizar a mudança social e política formando alunos criticamente, sem priorizar conhecimentos básicos e atualizados, nem priorizar no ensino do aluno o ingresso no mercado de trabalho. 

Estas ideias geram uma enorme frustração na vida do professor que só deseja que seus alunos aprendam, adquiram novas habilidades com a expectativa de que futuramente sejam empregados, anos mais tarde, após se formarem. 

Necessário repetir, ao priorizar esse conhecimento crítico em detrimento da transmissão de conhecimentos, acabamos por ter 73% de nossos estudantes nos níveis mais baixos de desempenho matemático com dificuldades em converter moedas, comparar distâncias, avaliar adequadamente um gráfico. 

Não seria mais fácil dedicarmos ao básico antes de priorizar toda essa criticidade que é facilmente contestada pela realidade escolar brasileira? Esses resultados não são apenas desanimadores, eles colocam em risco toda e qualquer perspectiva de pluralidade que é tão vendida nos ambientes escolares