Professora de Língua Portuguesa há 10 anos, apresentadora da Brasil Paralelo, fundadora do Expressando Direito (Curso Prático de Português Jurídico) e do Texto Irresistível (Curso de Boa Escrita e Gramática Normativa).
É frequente a pergunta “Como ampliar meu vocabulário?”.
Se procurarmos sugestões na internet, veremos listas de ações como “ler bastante”, “procurar no dicionário”, “ver bons filmes”, “pesquisar novos assuntos” etc. São todas iniciativas válidas, é claro, mas me parece que a simples leitura desses conselhos nem de longe incentiva o leitor a praticá-los.
Vocabulário amplo não é um fim em si, mas a consequência de uma portentosa (ao dicionário!) fome de mundo. A expansão da malha vocabular advém de um espírito com sede da mais rigorosa e rutilante (dicionário, dicionário!) descrição da realidade.
Os grandes escritores sabem disso e certamente perdem o sono em busca da precisão. Sou incutida que Machado de Assis passou meses para selecionar cada uma das palavras referentes aos olhos de Capitu:
“Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”
“Não me acode”. Poderia ser “não me auxilia”, “não me ocorre”, mas só “acode” acode descrever a irrupção hemorrágica daqueles olhos. “Ressaca”: por que ressaca, meu Deus? Por que não “ciclone”, “tempestade”, qualquer coisa sem cheiro de álcool em sua primeira fungada? Porque nada invadiria com tanta força, nada seria digno da quebra de dignidade do estilo como a “vaga” praiana vertida dos olhos de Capitu.
Veja: não é a vontade de soar inteligente ou elegante que move Machado na busca pela palavra precisa. Sozinhos, esses desejos não sustentam um dia sequer das exigentes ações de que necessitam para se concretizar. O que o move ¬– e chuto mover todo bom escritor – é a caça caturrenta (não adianta dicionário, inventei agora) da palavra mais precisa, da palavra peremptória (dicionário!) e incontornável.
Escreveu o professor Napoleão:
“’Culto’ é sinônimo de ‘cultivado’, na acepção de ilustrado. O próprio verbo cultivar possui, entre outros, o significado de aperfeiçoar-se, aplicar-se, ilustrar-se em. [...] Se numa acepção se diz ‘cultivar o campo’, em sentido figurado se diz ‘cultivar o espírito’, ‘cultivar a memória’. Não nos admiremos, por conseguinte, da sinonímia entre as formas participiais ‘culto’ e ‘cultivado"'.
Ou seja, culto não é o rebuscado, o que conhece um montão de palavras só “porque sim”. É aquele que se aperfeiçoa justamente porque cultiva, matura alguma coisa. E que coisa é essa? Ora, certamente essa coisa será mais bem descrita e sorvida quanto mais policromático for o vocabulário do indivíduo. Então a solução é desenvolvê-lo.
Machado de Assis colheu a palavra precisa porque a cultivou. Entrou em contato com ela e plantou-a em seu cérebro, em seu espírito. Na hora certa, ela irrompeu alegremente de sua pena. Não o imagino pensando algo como “vou ver muitos filmes e ler muitos livros para ampliar meu vocabulário”, mas penso nele cultivando a palavra que pode ter colhido em qualquer lugar: na boca do vendeiro, no bilhete achado no chão, nas páginas de Padre Antônio Vieira, no rodapé da tradução de Shakespeare, na canção sofrida entoada pelo sapateiro que passava em sua porta.
É desse espírito, creio, que se deve revestir quem quer “aumentar o vocabulário”: do espírito de cultivo, do olhar de esmero – quase de bisbilhotice – pela expressão verbal, do ouvido atilado (ao dicionário!, ou talvez nem precise...) para a imagem acústica das palavras.
Isso é um jeito de viver, é a regulação de uma lente interna, não um protocolo implantável pela força do muque. Buscar ampliação do vocabulário simplesmente por fazer, parece-me, será sempre artificial, enfastioso, ou só meio boboca (dispensa dicionário) mesmo.