Henrique Simplício

Doutor em Neurociências, é palestrante, escritor, autor e organizador dos livros "Pedagogia do Fracasso" e "Pedagogia do Sucesso" (volumes 1 e 2) publicados pela editora Ampla.

As Bases do Autoritarismo Universitário Brasileiro

Durante anos, o sonho de boa parte dos jovens do país era ingressar em uma universidade pública brasileira. Ser aprovado em uma dessas instituições, representadas em sua maioria pelas universidades federais, oferecia ao jovem um certo prestígio e até um tom de autoridade no cotidiano.

Henrique Simplício

Quem é do meu tempo, deve se lembrar de quanto o brasão de uma instituição federal significava para muitos jovens secundaristas. 

Desde os cursinhos preparatórios, até a mãe que puxava assunto com as vizinhas só para contar que a filha iria cursar uma faculdade federal, existia (hoje, bem menos) a percepção de que entrar em uma universidade o tornava uma pessoa especial, diferenciada entre os cidadãos. 

Muitos alunos sonhavam com o dia do exame vestibular e tinham crises de ansiedade só de imaginar a possibilidade de esperar mais um ano para fazer parte de uma dessas instituições. 

O que as pessoas não sabem é que, a partir do momento em que eles entrassem lá, muita coisa mudaria… e nem sempre para melhor. 

Como apresentamos na coluna avaliando o declínio da autoridade do ensino superior, a influência e validação da sociedade perante o diploma universitário reduziu bastante

Junto com a diminuição da autoridade, é possível identificar também no campo das ideias uma depreciação das expectativas e diminuição do respeito aos estudantes universitários

Sem emprego, com uma moralidade tão afiada quanto tóxica, muitos desses jovens parecem perdidos, ainda abraçados às falsas expectativas e às ideias absorvidas durante o período universitário. 

O "antes e depois da federal", meme que demonstrava como as pessoas mudaram seu comportamento após ingressar em uma universidade, continua vivo, e está longe de ser uma piada, fruto da inveja dos que não estão lá.

Os alunos da federal que há um tempo eram até vistos sob alguma expectativa, têm sido agora corriqueiramente vistos como pessoas separadas da realidade, com linguajar intragável, normalmente usando algum tipo de visual ou padrão de comportamento que parece buscar no afetamento ou moralidade exagerada um certo distanciamento da sociedade. Não raramente, estes jovens têm se colocado como caricaturas na internet.

Ao longo de mais de uma década frequentando essas instituições, seja como professor, aluno ou congressista, consigo afirmar que parte dessa percepção não é inventada

E o melhor, parte das raízes desse fenômeno foram apresentadas há décadas pela ciência política brasileira. 

Muito antes do termo fake news, da polarização Bolsonaro X Lula ou mesmo das redes sociais, já existiam obras inteiras avaliando como certa mentalidade existente no setor público poderia criar essa separação dentro da sociedade.

Vamos a ela.

Quem são os donos do poder e como eles controlam o pensamento universitário?

Em 1958, Raymundo Faoro publicou pela primeira vez o livro "Os Donos do Poder". Neste livro, Faoro apresenta como o espírito de uma elite do funcionalismo público atuou ao longo da formação e legitimidade do Estado e da sociedade brasileira

Ainda desde a formação sob o domínio da coroa portuguesa, nossas bases do funcionalismo público teriam incorporado características elitistas e estamentais

Essas características se expandiram e perseveraram ao longo da história das instituições nacionais.

Esse espírito é perfeito para compreender o distanciamento da mentalidade do universitário brasileiro dentro das instituições públicas e da sociedade brasileira. 

Segundo Faoro, o Brasil teria herdado desde suas raízes históricas uma mentalidade bastante prejudicial para um projeto de sociedade. 

Haveria uma elite que se comportaria através de um estamento burocrático patrimonialista que canibaliza o desenvolvimento da sociedade. Mas o que seria esse estamento burocrático patrimonialista?

Esse grupo dentro da sociedade brasileira se comportaria como um estamento, pois seria fechado em si próprio, distante da sociedade. 

Também seria burocrático, não por ser neutro ou racional, no sentido moderno do termo. Essa elite atuaria de forma burocrática por sua legitimidade pública baseada nas normas e no consentimento do Estado aceito ao longo de gerações. 

Por fim, também seria patrimonialista, ou seja, uma organização que se volta para seus próprios interesses, ignorando os limites entre o poder público e privado, trabalhando pelo segundo, mas fingindo colocar o primeiro como pano de fundo.

Com a palavra, o próprio Faoro:

"Estamento será seu conceito, quer se denomine elite, classe dirigente, classe política, intelligentsia. Aproxima-se, nos extremos casos de fechamento sobre si próprio, da casta, sem tocar no tipo classe socialEm consequência de sua estruturação autônoma, desdenhosa do contato íntimo das categorias sociais que atuam na base da pirâmide, tem caráter escolástico, acadêmico, no sentido de se alhear dos problemas concretos da vida e da sociedade.Preocupa-se mais em preservar sua unidade de pensamento, numa sistematização nem sempre dogmática, do que com a reelaboração teórica dos fatos, da história própria."
"O sistema prepara escolas para gerar letrados e bacharéis, necessários à burocracia, regulando a educação de acordo com suas exigências sociais. Eles não são flores de estufa de uma vontade extravagante, mas as plantas que a paisagem requer, atestando, pelo prestígio que lhes prodigaliza, sua adequação ao tempo."
"O ESTADO, envolvido por uma camada de domínio, um estado-maior de governo, o estamento de feição burocrática, se alimenta de uma classe, a classe comercial, que ele despreza e avilta. Entre os dois grupos, as relações se estruturam no plano existencial, econômico, sem levarem a um estilo de vida comum; aristocrático é só o estamento, só ele está junto da corte, só ele influencia as decisões da Coroa. O comércio enriquece; o estamento consome senhorialmente, pouco preocupado com a sorte da galinha dos ovos de ouro".

Qualquer semelhança entre a teoria de Faoro e o modus operandi universitário, não é mera coincidência

Distantes da sociedade, voltados aos seus próprios interesses e sustentados pelo legado da máquina pública, vemos com frequência como as universidades se tornaram o berço de militâncias radicais. 

Muitas pessoas perguntam-se incrédulas como as universidades toleram o radicalismo desses grupos e propagam esse tipo de comportamento (por vezes institucionalmente).

O que essas pessoas não sabem é que essas militâncias, na grande maioria das vezes, ocupam um propósito dentro das instituições

Essas militâncias prosperam dentro dessas instituições justamente por atuarem na defesa do próprio estamento descrito por Faoro. 

Como anticorpos de determinada parte vital do organismo, a militância estudantil universitária está sempre lá quando necessário na defesa dos interesses do estamento

Todo investimento, aumento de verba, auxílio, expansão dessas instituições significa no fim das contas mais forças desse estamento descrito por Faoro.

Alguém conhece alguma militância forte dentro das universidades públicas que defenda a privatização das universidades ou mesmo a entrada do mercado dentro dessas instituições, pregando a diminuição da máquina pública?

As pessoas têm dificuldades de responder essa pergunta simplesmente porque esse tipo de opinião não prospera dentro das universidades

E o pior, muitos estudantes concordam que boa parte do movimento estudantil age de forma autoritária, que seria importante a entrada do mercado dentro dessas instituições e que há muita corrupção dentro da esfera pública. 

Essas pessoas só não encontram quem as represente porque essas ideias são mortas no berço dentro dessas instituições

Afinal, elas estão em completo desacordo com os objetivos do estamento burocrático universitário. 

Mas o que impulsiona esse radicalismo dentro das universidades?

Muitos calouros, recém-chegados nas universidades, são quebrados ao meio e reconstruídos à imagem e semelhança desse estamento, compondo uma verdadeira militância universitária. 

Para recrutar os recém-chegados, o estamento burocrático utiliza-se de estratégias que são bem tentadoras e racionais, especialmente aos mais novos.

Boa parte dessas instituições vende a ideia de que esses jovens são especiais simplesmente por comporem parte de seu seleto grupo de membros.

Quantas vezes, não escutei de uma dessas instituições federais que os alunos agora, faziam parte de uma instituição de ensino de excelência. Que, agora, os seus novos alunos faziam parte da elite intelectual do país.

Agora, imagine você, um jovem entre seus 17 e 23 anos de idade, muito provavelmente ainda dependente de seus pais, com algumas humilhações familiares no currículo, sem muito dinheiro, muito menos emprego para decidir o que fazer da vida. 

De repente, ao passar em uma prova, você ingressa em um local que afirma que você é especial simplesmente por estar ali

Agora, você faz parte de uma instituição de excelência e aqueles que não reconhecem suas conquistas e não valorizam seus méritos, estão errados e não sabem o que é melhor para o país e o mundo

Já você, claro, está do lado correto da história. Você defende o progresso, a ciência, a cidadania e a luta contra a desigualdade. E a instituição que você acaba de adentrar não só irá valorizá-lo por isso, mas lhe oferecerá um grupo de correligionários, amigos de causa.

Parece tentador, não é mesmo? Ouvir os próximos passos dessa pregação e se juntar ao grupo. 

A partir desse momento, as universidades começam já a preparar os futuros membros de defesa do estamento burocrático brasileiro. 

E o melhor, ela chega a prometer que se você obedecer a estes mandamentos e cumprir com a cartilha, há uma grande chance de receber um bom emprego no futuro. Pode ser na política, na esfera pública, indicação ou mesmo nos concursos públicos.

Esse tipo de mentalidade propagada dentro das instituições brasileiras, encontra na vaidade juvenil ou no desespero do brasileiro comum pela sobrevivência, frustrado pelas poucas oportunidades na iniciativa privada, as motivações corretas para se propagar pela sociedade.

Nesse meio, forma-se a religião universitária, construída pelas bases do estamento burocrático brasileiro. 

Seus devotos passam a criar um sentimento tão forte por essas instituições que tomam desprezo por todos que ousam fazer críticas ao ensino público, mesmo que pautado pelas mais altas evidências científicas.

Não é de se estranhar que do alto da estabilidade do funcionalismo público, certos professores universitários sintam-se à vontade para se comportar como deuses

A defesa do Estado, personificada na universidade pública, passa a tornar-se o propósito de vida dessas pessoas.

Como fanáticos por um time de futebol, a defesa dessas instituições pautada no radicalismo do movimento revolucionário ganha ares de devoção

A trindade Pai, Filho e Espírito Santo de Deus, Pai, Todo-Poderoso se transformou no trilema do "público", "gratuito" e de "qualidade". 

Trilema, pois o público que a militância universitária normalmente se refere é uma caricatura que obedece à cartilha do estamento personificada no movimento revolucionário.

Também não pode ser gratuita, pois consome tempo e se mantém graças à pesada carga tributária imposta pelo Leviatã do Estado brasileiro. 

Por fim, também não pode ser resumida ao adjetivo "qualidade", já que boa parte dos cursos tem criado um contingente de desempregados, ávidos pelo próximo concurso público para que finalmente, invertam seus papéis e passem a fazer parte da nobreza estamental.

Essa realidade está longe de ser aquela propaganda de "viva a ciência" ou "valorizem os cientistas" por vezes defendida por podcasts e blogueiros que não acidentalmente esquecem que esses problemas existem na hora de vender sua caricatura dessas instituições. 

A maioria desses profissionais não são bobos e entendem que tocar nesse assunto te torna uma persona non grata para o estamento burocrático universitário. 

O preço de ter esse estamento como inimigo pode ser alto demais. Assim, propaga-se a espiral do silêncio que controla o ensino superior brasileiro.

Esse é o primeiro texto de uma trilogia narrando alguns dos desafios contemporâneos da universidade brasileira. Nos vemos na semana que vem.