Nicholas Vital

Jornalista e escritor. Autor dos livros "Agradeça aos agrotóxicos por estar vivo" e "Guia de Comunicação para o Agronegócio". Acompanha há 20 anos o dia a dia do setor.

OPINIÂO

A verdadeira história dos latifundiários do Cerrado

A saga de João e Maria é muito parecida com a de outros milhares de brasileiros que deixaram tudo para trás em busca de uma vida melhor nas novas fronteiras agrícolas do Brasil

Nicholas Vital

Mais do que em qualquer outro segmento da economia, o agronegócio é pautado pela meritocracia. Trata-se de um setor que possibilita crescimento e mobilidade social baseados exclusivamente no próprio trabalho

E aqui não estamos falando necessariamente do esforço físico. O investimento contínuo em educação e treinamento, uma boa gestão da propriedade, o apetite para o risco, além de uma boa dose de sorte (já que existem alguns fatores importantes, como o clima, que simplesmente não podem ser controlados pelos produtores), são fatores decisivos nesta atividade. 

É o que faz os pequenos prosperarem. E também o que tira muitos herdeiros de terras deste negócio. 

Casos de sucesso e empreendedorismo rural existem aos montes no Brasil. Contarei aqui um caso real que ilustra bem o processo de crescimento de produtores familiares até se tornarem grandes empresários do agronegócio nacional. 

Uma saga repleta de desafios, renúncias e trabalho árduo. Para evitar exposição - e como a história é muito parecida com a de muitos outros - usarei nomes fictícios

Filhos de cafeicultores, João e Maria se conheceram ainda nos tempos de escola, em uma pequena cidade do interior do Paraná. Mais novo entre seis irmãos, João estudou a vida toda em uma escola agrícola e começou a trabalhar no sítio da família aos 14 anos. 

Já Maria acompanhava o pai nas lavouras de café desde os 8 anos de idade. Com 11, já fazia "trabalho de homem", como ela mesma descreve.

Após a morte do pai de João, os negócios da família passaram a ser tocados pela mãe e pelos irmãos. Os mais velhos ficaram responsáveis pela fazenda principal, onde era produzida a maior parte do café. Já João, aos 15 anos, assumiu uma propriedade menor, que logo foi convertida para a produção de soja, cultura recém-chegada ao Paraná.

A família trabalhava unida e os negócios iam relativamente bem. O único problema era a falta de perspectiva de crescimento. "Era pouca terra para muita gente", relembra João. 

"Neste momento, a minha mãe começou a vender as nossas terras no Paraná e a comprar áreas maiores no Mato Grosso." Naquela época, com o valor obtido com a venda de 1 hectare de terra no Sul, era possível comprar 15 hectares na nova fronteira.

Em 1982, aos 18 anos, João se casou com Maria. De "presente", recebeu da mãe a missão de "abrir" uma fazenda de 1.000 hectares na cidade de Primavera do Leste, município localizado a 250 quilômetros de Cuiabá, e iniciar o plantio de grãos na nova propriedade. 

Desafio aceito, João colocou alguns poucos pertences na caçamba da sua Chevrolet D10 e partiu com a esposa, já grávida, para o Mato Grosso.

A viagem de 1.200 quilômetros por estradas precárias, boa parte delas de chão batido, já era por si só uma aventura. 

A vida em uma região completamente isolada, morando em uma pequena casa de madeira com chão de cimento queimado, sem direito a banheiro interno, energia elétrica, telefone ou assistência médica, tornava o cenário ainda mais desafiador. 

Por outro lado, as terras tinham grande potencial produtivo, o clima era favorável e ainda existia a possibilidade de expansão. O trabalho, no entanto, precisaria ser iniciado do zero

Com o auxílio de máquinas rudimentares, João iniciou a abertura das áreas para o cultivo. No primeiro ano, conseguiu plantar 250 hectares de soja. Apesar do solo fraco, a lavoura se desenvolveu muito bem na região.

Após três anos de trabalho intenso, a fazenda já estava completamente aberta e o casal, agora com três filhos, pôde, enfim, se mudar para uma nova casa. 

Os negócios iam bem. João, então, passou a investir o lucro obtido com a venda dos grãos na compra de mais terras. Primeiro foi a fazenda de um vizinho que não se adaptou à realidade da região. Outras terras foram sendo agregadas, pelos mais variados motivos, ao longo dos anos. Hoje, a área disponível para o plantio de soja, milho e algodão no Mato Grosso já soma mais de 50 mil hectares.

Já os filhos de João e Maria tiveram uma trajetória bem diferente. Nascidos e criados na fazenda, os jovens tiveram a oportunidade de estudar na cidade, fazer faculdade e adquirir o conhecimento necessário para ajudar os pais a adequar a produção à nova realidade do agronegócio, muito mais moderna, tecnificada e sustentável. 

Atualmente, as operações nas fazendas da família são tocadas por Joaquim, Roberto e Lucas, sob supervisão do pai, que hoje exerce um papel de conselheiro. 

"Com a entrada dos meninos no negócio, houve um salto na produção. É uma geração muito mais tecnológica e atenta às novidades, que vem agregando muito ao negócio", afirma o patriarca.

Sob o comando dos "meninos" (na realidade, homens já se aproximando dos 40 anos de idade), as fazendas foram todas informatizadas

Boa parte das máquinas já opera de forma autônoma, via GPS, enviando informações em tempo real para o escritório central - algo possível graças à instalação de dezenas de torres de internet, pagas com recursos próprios -, o que possibilita o monitoramento das atividades 24 horas por dia e a otimização do uso dos tratores, plantadeiras e colheitadeiras.

À mãe, cabe a gestão dos mais de 500 colaboradores diretos e as ações sociais do grupo. Após superar com resiliência as dificuldades da chegada ao Mato Grosso, Maria hoje trabalha para dar uma vida digna aos funcionários das fazendas e a suas famílias, atuando desde a construção de casas (mais de 100 no total) até as ações de treinamento e qualificação do pessoal

Também é de responsabilidade da matriarca a organização das confraternizações de final de ano, famosas por trazer grandes nomes da música sertaneja.

Hoje, a família é reconhecida e querida pela população de Primavera do Leste, cidade que se desenvolveu na esteira do crescimento do agronegócio. Não são poucos os casos de filhos de funcionários que se tornaram engenheiros, advogados ou empresários

Não há pedintes na cidade. E isso acontece porque boa parte da riqueza criada ali, fica na própria região, por meio da compra de insumos, máquinas, carros, materiais de construção, alimentos, entre outros itens, o que movimenta a economia de todo o município e gera mais empregos.

João e Maria hoje estão muito bem de vida. Somente as fazendas da família valem atualmente mais de R$1,5 bilhão. Mas é importante destacar que não ganharam nada de mão beijada nem de forma ilegal

Tudo o que eles têm foi conquistado ao longo de quatro décadas de trabalho duro. Uma trajetória que começou na casa de madeira sem energia e terminou com um final feliz, beneficiando milhares de famílias neste período.

Este não é um caso isolado. A história de João e Maria é muito parecida com a de outros milhares de brasileiros que deixaram tudo para trás em busca de uma vida melhor nas novas fronteiras agrícolas, seja no Mato Grosso, no Tocantins ou no Piauí. 

Histórias de empreendedores destemidos, que deveriam servir de inspiração para os mais jovens, mas que hoje, infelizmente, são vistos com desconfiança por uma boa parcela da população brasileira.