Elton Mesquita

Elton Mesquita é escritor, tradutor e roteirista na Brasil Paralelo. Seus textos fazem valer sua crença de que tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente.

A Paixão Segundo H. L.

O doutor Hannibal Lecter fica bem perto de um coração verdadeiramente selvagem.

Elton Mesquita

Clarice se dirigiu para a cadeira que o afável Barney arranjara para ela, de frente para a cela do Dr. Lecter. Tirou um cigarro da bolsa, sentou, cruzou as pernas e esperou. Na tela de vidro à sua frente, viu seu reflexo — suas longas pernas, a pequena bolsa no colo, sua mão descarnada, quase uma garra, acendendo o cigarro.

O Dr. Lecter se desprendeu da escuridão do fundo da cela e se aproximou com três passos medidos. Seus olhos brilhavam de curiosidade e ele desistiu de conter seu sorriso por mais um segundo que fosse.

“Bom dia”, disse ele.

“Bom dia”, Clarice respondeu.

O Dr. Lecter examinou a mulher que tinha diante de si por algum tempo. Então assumiu o tom de voz que considerou adequado e disse:

“Crawford deve estar desesperado para mandar uma recruta para mim”.
“O desespero é seco como as areias do deserto e a perplexidade sufoca, humilha”.

O Dr. Lecter, preparado para rebater seja lá o que aquela mulher tivesse para dizer, teve que engolir suas duas ou três palavras, surpreso. Dominou-se a tempo de se impedir de olhar para os lados, sinal de visível desconcerto.

“Não fomos… não fomos devidamente apresentados”, disse ele.

“Meu nome é Clarice. Você disse que falaria comigo”.

“Aah, Clariiice”, disse o Dr. Lecter, num sibilo.

“Tenho certeza de que você gostaria que eu falasse. Mas olhe pra você, será que você entenderia o que tenho para dizer? De onde é esse seu sotaque que você gostaria de ter coragem para tentar esconder? E esses sapatos de pobre, contrastando com essa bolsa nova, onde se nota um pouco de gosto… é isso que você é, Clarice, uma pobretona com algum gosto?”
“O sotaque é ucraniano. Quanto a quem sou, é curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que digo”.

O Dr. Lecter encarou Clarice. Esperava a reação de sempre, a quase audível sensação do olhar do interlocutor recuando, e tudo foi para ele um desapontamento. Pois foi o seu olhar que teve que se desviar do de Clarice, que tripudiou da pequena vitória baixando os olhos logo em seguida para procurar algo em sua bolsa como se nada tivesse acontecido.

“Então…”, disse ele, procurando dizer algo que lhe permitisse avançar território adentro em sua mente.

“Crawford manda você aqui, esperando que eu lhe dê alguma pista sobre Buffalo Bill. Para que ele consiga pará-lo antes que ele mate mais moças. Você viu o que Buffalo Bill faz com elas, as garotinhas do papai? Ele tira a pele delas. Acho que ele quer fazer um vestido de mulheres. O que acha da idéia, Clarice? O que você acharia se Buffalo Bill pusesse aqueles dedos inventivos em seu cadáver fresco?”
“Que façam harpas de meus nervos quando eu morrer”.

De nervoso, o Dr. Lecter riu alto. De repente, sua cela lhe pareceu uma jaula. E por que aquela mulher não movia um músculo do rosto para falar?

“Algum gosto e alguma inteligência. Oh, o que temos aqui?”, disse o Dr. Lecter, sentindo a boca seca. O sotaque daquela mulher soava como pedras colidindo, era irritante e irresistivelmente interessante, ao mesmo tempo. Aquela mulher tinha uma mão que era cartilagem e osso, e o charme com que aquela mão manipulava o cigarro…

“Lemos alguma coisa na Academia, não lemos? Enquanto nossas colegas flertavam com os instrutores por boas notas, nós líamos poesia, hein, Clarice? Você escreve poemas ou contos, aposto. Guarda numa caixinha e nunca os mostra a ninguém, não é? Ah, nós somos diferentes, não somos? Especiais?”

“Esse orgulho de viver me amordaça — eu não sou nada -”, Clarice respondeu. E então, fechando os olhos e abrindo os braços, deixando-os pender em seguida do lado do corpo, começou a entoar:

“Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós”.

“Oh, por favor… O que quer que você… pare com isso.”, disse o Dr. Lecter, sem saber o que fazer das mãos. Clarice não o ouvia, não podia ouvir, pois agora sua voz ficava mais e mais alta, ressoando nas paredes de pedra do corredor:

“Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós!”

“Buffalo Bill mora numa casa de dois andares na cidade em que encontraram a primeira moça morta, pronto, é isso! Agora pare! Pare com isso!”, o Dr. Lecter gritou.

“Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós! OOOOOOOOOooooooooooooooooohhh!” — e Clarice, olhos semicerrados como em transe, agora emitia um gemido cavo e escuro. Sua mão mutilada estremecia e fazia gestos como se possessa.

“Barney! Barney! Socorro! Deus, por favor, tirem essa mulher daqui!”, gritou o Dr. Lecter, batendo na grade com as mãos espalmadas e fechando os olhos. “Façam ela parar! Tirem ela daquiii!”

Súbito, Clarice parou de gritar. Apagou o cigarro, se levantou como se nada tivesse acontecido, disse “adeus” e se foi sem olhar para trás. Guardou a carteira de cigarros na bolsa antes de ir embora, já pensando na máquina de escrever que a esperava em casa.

O FBI tinha batido à sua porta procurando uma Clarice que evidentemente não era ela, no meio de um conto particularmente indócil. Mais para se livrar do incômodo que por interesse (não era estranha à impertinência americana), ela se dispôs a falar com o tal psiquiatra canibal, e lhe perguntar o que ele sabia sobre Buffalo Bill. Com alívio se desincumbiu da tarefa tediosa, e quando saiu para a rua já nem se lembrava do nome do homenzinho dentro da caixa de vidro.

Algum tempo após a saída de Clarice, o Dr. Lecter conseguiu se recompor. Logo, voltava a agir do modo costumeiro, mas daquele momento em diante soube que seu moral com os guardas e enfermeiros estava para sempre danificado.

Para manter as aparências, os funcionários e presos do Instituto Psiquiátrico continuaram a tratar o Dr. com o mesmo misto de temor e inveja de sempre. Mas ninguém pôde dizer que ficou surpreso quando, para o almoço, ele passou a pedir uma saladinha.

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Nota do autor: todas as falas de Clarice Lispector foram retiradas de respostas que ela deu em entrevistas.