Professor de português e escrita, revisor/preparador de textos e tradutor. Autor dos materiais “Crase sem crise” e “Desvendando o dicionário”. Graduado em Direito pela UEL.
Certa vez, no Instagram, tratei de certos purismos que hoje merecem ser superados, dado o abono de gramáticos mais atualizados e os vários exemplos que encontramos na literatura. Aproveitando a questão, gostaria de falar do que talvez seja uma das causas desse problema.
Quando você ouve (ou diz) que certa construção está errada, que não se fala dessa maneira em português, que o correto é assim ou assado, que a norma culta recomenda ou proíbe tal forma… como é que você encara esse padrão, essa “lei” que rege o idioma?
Pensemos juntos: a norma-padrão da língua portuguesa (que podemos, num sentido mais abrangente, chamar de “gramática normativa”) orienta a escrita, determinando como se deve ou não se deve escrever — o que pode e o que não pode ser empregado num texto formal, culto.
Mas você já parou para pensar de onde vem a norma? Quem a estabeleceu? Quem é o seu legislador ou juiz? Por acaso caiu do céu pronta e acabada, fixa e imutável? Por acaso só começamos a falar e escrever a partir de uma gramática que precedeu a própria comunicação?
Os gramáticos normativos — aqueles que elaboram longas obras para orientar o uso de idioma de forma prescritiva — não tiram as normas do nada, de algum portal mágico, tampouco as recebem por divina mão.
Antes, os gramáticos baseiam suas prescrições (os deves e não deves, podes e não podes) em fontes que os precederam.
Isso significa que, além de seguirem gramáticos anteriores que já sistematizaram a língua, eles também pesquisam e reúnem as próprias fontes do registro culto escrito: escritores de literatura, juristas, cientistas, acadêmicos, jornalistas etc.
Noutras palavras, embora procure determinar o uso da língua, a gramática normativa também se baseia no próprio uso: como se diz, “o uso determina a norma”.
Podemos dizer que tanto a fonte quanto a norma alimentam uma à outra: a gramática normativa se baseia no que os autores já escreveram para determinar o que pode ser dito ou não; e os autores que vêm depois tentam seguir, na medida do possível e do conveniente, o que a norma prescreve.
E é aqui que surge um “problema” (que não é bem problema) rejeitado por muitos, os quais preferem fechar os olhos à realidade: o que acontece quando os escritores do meio culto e formal passam a desviar da norma?
Veja bem: uma coisa é um ou outro escritor desviar do padrão. Outra bem diferente é quando todo um grupo de escritores começa a empregar formas diversas. É então que a gramática normativa — a norma — se vê obrigada a alargar suas fronteiras e reconhecer o novo uso como parte da própria norma, o “correto”.
Imaginemos um caso (por ora, fictício): se “assistir” (observar) pede a preposição “a” para seu complemento, mas grande parte dos escritores do meio culto e formal passam a usar o verbo sem preposição (“assistir um filme”), a ponto de até mesmo superar os que escrevem segundo a tradição, não há o que fazer: os gramáticos normativos terão de reconhecer o novo uso como válido e até mesmo prescrevê-lo.
É o que sucedeu, por exemplo, ao verbo “perdoar”, originalmente de transitividade indireta (“perdoar a alguém”, “perdoar-lhe”), o qual, por força do uso no meio culto, já aparece há bom tempo nos dicionários de regência também com o emprego direto: “perdoar alguém”, “perdoá-lo”.
O uso serviu à norma, e a norma agora o recomendará.
Evidentemente, todo esse processo é lento e deve ser muito bem monitorado — e é por isso que a gramática normativa às vezes parece não acompanhar as mudanças do idioma com a mesma velocidade.
Tudo o que se prescreve não é fruto de achismo ou de capricho do gramático (embora haja certas exceções a isso, é verdade): há muita pesquisa e ponderação envolvida.
Isso também não quer dizer que “tudo vale” (como afirmei, escritor sozinho não faz norma). Antes, trata-se apenas de uma realidade da qual os mais puristas não podem escapar: a língua muda, transforma-se, avança, abraça novos usos e significados.
Os escritores do meio culto, quando considerados em conjunto, são também agentes de transformação da norma.
Assim, não estranhe se, ao comparar uma gramática de 1900 e bolinha com outra do século XXI, você se deparar com diferenças nas prescrições.
Afinal, a norma não caiu do céu — muito pelo contrário: é feita e atualizada com rigor por homens que acompanham o lento fluir do idioma, tentando conciliar a tradição com a evolução dos usos.
Se não convém romper o dique sem ordem alguma, também não esperemos que coloquem uma barreira quando as águas querem seguir a todo custo.