Professor de Português com mais de 20 anos de experiência, autor do best-seller "A Gramática para Concursos Públicos" e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras do Porto.
... no exato instante em que linguistas brasileiros — como Ataliba de Castilho, Mário Perini, Marcos Bagno, Carlos Alberto Faraco — passaram a afirmar que a linguagem literária (aquela da maioria dos melhores escritores do idioma) não mais deveria ser usada como base, como referencial, como reflexo do verdadeiro e profundo cultivo da língua, isto é, da língua cultivada, da língua culta.
Um grupo de linguistas brasileiros, sobretudo a partir da década de 1970, foi reduzindo a "norma culta" à linguagem técnica e jornalística, com o conveniente e típico subterfúgio da visão tecnicista de mundo, a saber: de que a linguagem literária não mais refletia o real uso linguístico das pessoas cultas, as quais (para eles) não eram mais os melhores escritores do idioma, e sim qualquer indivíduo com diploma de nível superior pendurado na parede ou guardado na gaveta — não é piada, é sério.
A reconfiguração de "uma pessoa verdadeiramente culta" desconfigurou a "norma culta", de modo que a noção de alta cultura linguística foi esvaziada, visando a uma espécie de horizontalidade normativa para remodelar o "modelo de uso linguístico".
Essa mundividência pôs em coma, a fórceps, a verdadeira norma culta, que passou a ser uma linguagem burocrática, espelho do pragmatismo e utilitarismo contemporâneo — inimigos da arte.
O que era "norma culta" virou "registro formal da língua", como se a alta cultura linguística fosse sinônimo absoluto de formalidade. Que redução malandra e somítica!
O teórico literário Rodrigo Gurgel assim escreveu (06/03/2024) em seu perfil do Instagram:
"'Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa.' Isso é o que George Orwell dizia sobre o trabalho do escritor.
E quanto a Flaubert, o autor de 'Madame Bovary'? Ele dizia:
'Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. E preciso uma vontade sobre-humana para escrever, mas eu sou apenas um homem.'
E em outra carta ele diz:
'Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias? Vinte. Vinte páginas em um mês, e trabalhando pelo menos sete horas por dia. E qual é o fim de tudo isso, qual é o resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em que se amparar a não ser a ferocidade dessa fantasia indomável.'
Se é assim para os grandes escritores, como será para nós? Não, meu caro, na escrita não há glamour.
Suas histórias não fluirão através de uma máguina de datilografar enquanto você bebe um gole de whisky e planeja uma temporada em Paris. Se você quer ser um escritor, vai ter de sentar à mesa mais próxima e, aos recursos que já dispõe, acrescentar dedicação e suor. (...)"
Isso me lembrou o poema "A um poeta", de Olavo Bilac:
Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!
Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.
Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade
O que esses textos de Gurgel e Bilac têm em comum?
Um critério objetivo.
Mas que critério é esse?
A única maneira de a linguagem refletir o dizer dos pensamentos humanos, em seu estado mais depurado e simples, é o processo sofrido do cultivo, para transmutar objetivamente, por meio das palavras, a subjetividade da alma humana e de tudo que a cerca.
Assim definiu o poeta Matthew Arnold sobre o que é CULTURA:
"Cultura é a busca da nossa perfeição total por meio do conhecer, em tudo aquilo que mais nos concerne; é o que de melhor já se pensou e já se disse."
Então se pergunte:
Será que é a linguagem fria, burocrática e limitada dos textos acadêmico-científicos — alguns até muito bem escritos — a fonte e a forja da alta cultura linguística, como dizia o linguista Eugenio sobre não outra linguagem senão a literária?
Será que é a linguagem jornalística — habitualmente escrita a toque de caixa pela velocidade dos eventos mundanos — a base da verdadeira cultura letrada?
Será que a verdadeira "norma culta" é essa linguagem não cultivada, não pensada mil vezes, não esmerada, não polida, não destilada, não conduzida ao estado de arte?
Enquanto esse pensamento prosperar no Brasil e não houver um resgate da linguagem literária como manancial da verdadeira norma culta*, não haverá sequer pessoas que anelarão tornar-se verdadeiramente cultas, de modo que a norma culta ficará à deriva... à espera de acordar do seu coma profundo.
*Não confunda “norma culta”, a cultivada pelos melhores escritores do idioma, com “norma-padrão” (esta, sim, a que se usa nos veículos de comunicação com maior grau de formalidade).