Professor de Português com mais de 20 anos de experiência, autor do best-seller "A Gramática para Concursos Públicos" e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras do Porto.
Nocaute:
(1) 84% dos brasileiros não compraram sequer um livro em 2023;
(2) texto mais longo lido por 66% dos alunos brasileiros não passa de 10 páginas;
(3) segundo o Pisa 2022, alunos brasileiros com 15 anos de idade estão bem abaixo da média da OCDE em leitura — o Brasil está em 52º no ranking;
(4) 38% dos universitários brasileiros são analfabetos funcionais, segundo o Inaf.
E aí? Após esses dados da realidade brasileira, dá para sair da lona e voltar ao normal antes que a contagem chegue a 10, e a luta se dê por encerrada?
Dá, e me parece que a solução passa por uma atividade bem simples, que foi sendo gradativamente esquecida pelos professores ao longo das últimas décadas.
Antes de chegar a isso, porém, um passo atrás. Acompanhe o raciocínio.
Se 84% dos brasileiros não compraram sequer um livro em 2023, isso significa que 16% compraram pelo menos um livro, certo?
Ok.
Mas a pergunta que fica é: que tipo de livro?
Pode ter sido um livro de culinária, um livro de autoajuda, um livro de instrumentos hidráulicos, um livro de como se tornar um coach de sucesso, um livro de piadas, um livro de pássaros asiáticos, um livro de como ficar milionário em 45 dias, sei lá...
E a literatura? Literatura de verdade? Provavelmente esses 16% se tornariam uns 10%, sendo otimista.
Provavelmente. Mas continue na minha linha de raciocínio: suponha que 10% dos brasileiros tenham comprado ao menos 1 livro de boa literatura (do cânone nacional ou do cânone internacional), cujo conteúdo faz parte do arcabouço cultural de qualquer pessoa verdadeiramente culta.
Prepare-se para o plot!
Será que esse potencial leitor leu o livro em sua integralidade, da capa à contracapa, ou só leu um pedaço e largou pra lá, ou ainda pior: comprou e nem leu nada?
Pois é... de 16%... para 10%... para 5%, talvez?
Sei lá... Talvez. Bem talvez. Segundo algumas pesquisas sobre a média de leitura de livros por ano, o brasileiro está bem abaixo dos países desenvolvidos.
No Brasil, leem-se 4 livros por ano, mas não integralmente — e não há nenhuma garantia que o livro seja de boa literatura (crônicas, contos, novelas, romances, poemas).
Pois é... Trata-se dum cenário assustador, sobretudo porque os países dos primeiros lugares do Pisa 2022 leem, em média, mais de 10 livros por ano. Enquanto isso, no Brasil...
Quanto menos lemos, mais cognitivamente limitados ficamos. Se não exercitarmos nosso cérebro, nós nos tornaremos cada vez mais medíocres intelectualmente.
Em português claro: estamos ficando cada vez mais burros, e uma pessoa burra é mais facilmente manipulável.
Apesar desse cenário desolador, em que a bigorna da realidade é implacável, ainda mantenho meu otimismo. Sabe por quê?
Porque a solução para esse problema é bem simples.
Três letrinhas: L, E, R.
Mas ler o quê?
Boa literatura.
E o que é boa literatura?
A boa literatura é aquela que trata das facetas da alma humana em toda a sua complexidade, que nos toca o espírito, que nos espelha e nos lapida, que nos expande a capacidade cerebral, que nos reacende a percepção da linguagem poética, que nos aproxima da beleza, que nos faz ver o sublime, que nos encanta, que nos alimenta a criatividade e a clareza do pensamento, que nos eleva como ser humano, que conversa com o nosso mais profundo eu e nos faz refletir sobre a existência.
A alta literatura, como toda arte, tem três características basilares: a universalidade, a atemporalidade e a plurissignificação.
A alta literatura não é datada. Ela rompe as fronteiras do tempo e do espaço, de modo que um homem letrado do Camboja vai se identificar com os textos de Homero, de Virgílio, de Dante, de Camões, de Shakespeare, de Machado, etc., porque esses textos não falam de coisas, e sim de pessoas, do espírito humano.
Se você ler uma obra literária aos 20 anos, vai entender X; aos 30, X² ou Y; aos 40, X³ ou Y²; aos 50...
A essa altura, você deve estar se perguntando:
— Mas, Pestana, a geração de hoje não entende nem o conteúdo de um banner com uma propaganda no Instagram, quanto mais alta literatura... Quando querem ser criativos, terceirizam o que nos faz humanos, ou seja, usam o ChatGPT para isso. Acho que você está sendo um pouco irrealista.
E o que você sugere que leiam para saírem da exiguidade cognitiva, da mediocridade intelectual, da pequenez espiritual?
Jornais? Revistas? Livros técnicos?
Ok. Vamos partir desse princípio, então. Bora dialogar:
— Que tipo de linguagem é a linguagem jornalística e a linguagem científica/técnica: é uma linguagem predominantemente denotativa ou conotativa?
— Ih, não me lembro desses conceitos que aprendi na escola há uns 300 anos.
— Sem problemas. Um texto com linguagem denotativa é aquele que apresenta as informações a partir do uso de palavras em sentido LITERAL, em sentido objetivo, em sentido mais superficial, visando à rápida compreensão da mensagem, sem alto grau de reflexão, de modo que os textos são mais diretos, palatáveis, como vemos nas notícias de jornal, nas matérias de revistas, nas entrevistas em blogs, nos livros técnicos, etc. Já a linguagem conotativa diz respeito a um uso das palavras em seu sentido mais figurado, mais criativo, mais profundo, mais simbólico, mais poético, fugindo da obviedade formal, pois visa a uma elaboração estética mais profunda, conforme se vê nos poemas, nos romances, nos contos, nas fábulas, etc.
— Ok, entendi. Respondendo à tua pergunta, então, os textos com linguagem jornalística, técnica, científica certamente são denotativos.
— Exato. E qual é o objetivo da linguagem denotativa?
— Pelo que eu entendi, o objetivo é comunicar algo de maneira mais direta, mais objetiva, mais funcional, mais tecnicista, mais pragmática... Seria por aí, né?
— Isso. Toda linguagem denotativa tem o propósito de informar algo de modo objetivo, com uma função mais utilitária. É por isso que os jornais não são alta literatura, porque as notícias são fugazes, e amanhã há novas notícias, e depois de amanhã mais novas notícias, e assim ocorre de novo, e de novo, e de novo. Não há um projeto estético/ético de caráter universal, atemporal e plurissignificativo, como há na boa literatura.
— É por isso que os jornais e as revistas são usados para embrulhar peixe na feira, né?
— Pois é. Até hoje nunca vi nenhum feirante usando os textos de Castro Alves ou Graciliano Ramos para isso. Pelo contrário, em algumas feiras livres, há até barracas vendendo livros usados (alguns clássicos da literatura nacional/universal), o que prova a importância deles perante o povo.
— Então você está querendo dizer que a solução para o país (talvez para daqui a 50 anos) passa pelo resgate da boa literatura?
— Não há outra solução. Definitivamente. Pense: quanto mais alguém se alimenta só de textos com linguagem puramente denotativa (que, óbvio, têm a sua importância na vida mais cotidiana, mais funcional), quanto mais uma pessoa só lê jornais, revistas, artigos científicos, livros técnicos, mais sua mundividência será denotativa, mais sua mundividência será terrena, mais sua mundividência será de ordem materialista, passando a ter mais dificuldade de perceber as nuances simbólicas das palavras, de modo que seu pensamento ficará mais literalizado, a ponto de ficar embotada a sua capacidade de abstração, de conotação.
— Ou seja, a tendência é, a conta-gotas, ficar limitado o nosso repertório lexical, o nosso repertório de pensamento mais elevado, filosófico, né?
— Não tenho dúvidas.
No âmbito da Linguística, que é a minha área, a visão deturpada do ambiente acadêmico sobre a alta literatura como base do ensino de gramática, a partir da leitura primária dos clássicos, e ainda sobre o estabelecimento da verdadeira norma culta, a qual passou a ser um retrato da linguagem jornalística e científica, e não mais da linguagem literária e filosófica, alterou toda a educação brasileira, produzindo em larga escala professores de português pouco competentes, limitados.
As aulas de Português viraram um desastre quando se dissociou gramática de literatura, com a desculpa de que a verdadeira norma a ser ensinada era a dos gêneros textuais utilitaristas (Infelizmente sou fruto dessa geração. Depois de 40 anos, estou correndo atrás do prejuízo).
Logo, o pensamento de uma geração inteira ficou mais e mais literalizado, por causa da típica visão positivista da ciência — pelo menos no Brasil, a visão cientificista de mundo escanteou a literatura. E foi o começo do nosso fim.
Você já percebeu que a geração atual (altamente distraída pela hiperestimulação tecnológica) tem, cada vez mais, um pensamento e uma linguagem LITERALIZADA?
Explico: por definição, uma pessoa "literal" é aquela que tem uma visão de mundo limitada e uma consequente linguagem mais objetiva, mais presa aos sentidos superficiais que as palavras assumem.
Uma pessoa com um pensamento literal interpreta algo exatamente como está escrito ou falado, sem considerar metáforas e outras figuras de linguagem mais conotativas, ou contextos subjacentes.
Uma pessoa literal é aquela que tende a entender e a se comunicar consoante o significado estrito/primário das palavras, sem interpretação adicional, sem nuances, desconsiderando todos os possíveis liames.
Assim, essas pessoas podem ter dificuldade em entender as sutilezas da linguagem e as verdadeiras intenções por trás do uso das palavras, sobretudo porque à sua forma de pensar literalizada somam-se as verdades retóricas baseadas em crenças pessoais ou coletivistas, que acabam deturpando até mesmo o real significado das palavras e expressões idiomáticas.
Por exemplo, quando alguém diz que "denegrir" é uma palavra racista, quando alguém prefere ouvir só letras de funk altamente erotizadas, quando alguém não entende a profundidade de um aforismo como "Há mais presença em mim o que me falta", quando alguém não aprecia nem consegue fruir o conto machadiano "O espelho", etc., isso implica que ou a pessoa é analfabeta, ou é analfabeta funcional, ou é um diplomado que só vê o mundo de maneira autocentrada, sem que perceba isso.
A solução para esse fenômeno (repito) é simples:
O professor é o maior espelho do aluno. Um professor não deve ser um cara que rebola no TikTok, e sim um referencial e manancial de cultura letrada — isto é, se ele quiser realmente colaborar para a cultura deste país.
Logo, se todos os professores do Brasil lerem, nos cinco minutos iniciais da sua aula, uma fábula, um poema, um conto curto, um trecho de um romance, e fizerem isso em todas as aulas, em todas as turmas, em todos os colégios, até o fim dos seus dias como professor, a sociedade brasileira começa a mudar. Esse é o único remédio efetivo.
Só assim a visão literalizada de mundo, a maior doença dos últimos tempos, cessará.