Ao re-assistir "A Vida dos Outros" uma palavra fixou-se em minha mente: cinismo. Você já conheceu alguém que se comporta com cinismo frente ao mundo, em algum nível? Imagine viver numa sociedade na qual o principal valor que a oriente é, de fato, o cinismo.
Não é à toa que o número de suicídios aumentava drasticamente, ano após ano, na República Democrática da Alemanha - a Alemanha Oriental comunista da década de 1980. Como medida para resolver a questão do número de suicídios, o governo deixou de registrar essa estatística. Problema resolvido!?.
Um dos principais focos do filme é o retrato da vida de Gerd Wiesler, um agente da Stasi, órgão de segurança do estado alemão. Trata-se de um especialista em vigilância comprometido com a causa socialista e com seu trabalho; mas há algo de errado com ele.
Em um certo dia, ele contrata uma prostituta. No entanto, este homem solitário quer mais do que a prostituta está disposta a oferecê-lo. Ele quer alguma conexão emocional real. Ela, focada no aspecto comercial da situação, apenas pega o dinheiro que lhe é devido e vai embora.
Esse agente a contratou após monitorar por dias o apartamento de um dramaturgo, Georg Dreyman, que supostamente escreve contra o governo e contra o socialismo, mas que tem um relacionamento estável com uma mulher, com tudo que um relacionamento real traz. Gerd almeja o que o dramaturgo tem, mas sua dedicação ao partido e à RDA entram no caminho.
De alguma maneira, essa falta que Gerd Wiesler sente é dissociada de sua causa. Ele integra esse sistema que invade as vidas dos indivíduos, e que cria desconfiança na base de todas as relações, matando qualquer chance de convívio sincero e espontâneo entre pessoas, levando muitos ao desespero, inclusive ele próprio.
E ainda assim espera-se que ele continue funcionando como uma engrenagem na máquina, girando sem falha. Mas ele é uma pessoa. Aquilo o afeta, mais do que ele está pronto para admitir. Ele não se mata, mas se torna um fantasma: alguém sem elo com outro ser vivo, um uniforme que caminha sozinho.
De alguma maneira, os ideólogos e burocratas desses regimes querem que nós acreditemos que isso é necessário, e que algo bom virá disso. Parafraseando Soljenitsyn: nós sabemos que eles mentem, e eles sabem que mentem. Eles até sabem que nós sabemos que eles estão mentindo, mas eles seguem mentindo.
Na era pós a queda do Muro de Berlim, a vanguarda da vigilância estatal se deslocou para a China, de longe a líder global. Lá, o governo possui 500 milhões de câmeras de segurança para vigiar a população. Tome um momento para absorver este número. Isto é metade de todas as câmeras desse tipo existentes no mundo.
Algumas são capazes de identificar pessoas de costas usando I.A. (!). Além disso, devido à adesão aos smartphones, as coisas agora são digitais. Todas as transações referentes a qualquer coisa passam por um meio digital. Ou seja, passam por alguma rede controlada pelo Partido Comunista Chinês, tornando possível que alguém seja "trancado para fora" de todo o sistema bancário e de serviços do país, e de fato cancelado, de maneira inimaginável alguns anos atrás.
Eles conseguem até impedir alguém de comprar papel higiênico. A polícia não precisa prender ninguém; basta apertar um botão e ergue-se uma prisão digital.
Gerd Wiesler e suas escutas se tornaram desnecessários. Agora, nós pagamos pelas escutas com nosso dinheiro e as instalamos em nossas casas e as levamos em nossos bolsos.
Além disso, em vez de apenas informantes, um sistema digital de pontuação social entra em cena. Se alguém precisa de um empréstimo, é necessário que este seja um bom cidadão a serviço do Partido, do contrário, o será negado. É difícil prever para onde as relações entre pessoas irão nesse contexto; mas é ainda mais difícil ser otimista a respeito.
Na China, qualquer um é submetido a esse sistema. Mas e nós? Muitos governos no ocidente são simpáticos ao sistema chinês. As manifestações dos caminhoneiros no Canadá, por exemplo, e a maneira como as empresas de tecnologia se posicionaram em cooperação com o governo mostram isso. E não são apenas casos isolados. Como mostra o original BP "Os Donos da Verdade", ex- agentes da Stasi fazem parte de ONGs ligadas ao governo alemão que combatem as "fake news" e a "desinformação" em nome da "democracia". Soa familiar?
Olhando para este fenômeno, é surpreendente o quanto aceitamos entregar nossas vidas voluntariamente para estranhos, a troco muitas vezes de nada. Quem já leu algum dos "termos e condições" de serviços online supostamente gratuitos? É como alguns dizem: se o produto é grátis, então o produto é você.
Em 2017, a jornalista Judith Duportail exigiu que todos os dados adquiridos sobre ela pelo Tinder lhe fossem enviados. Uma nova lei havia passado na Europa que a permitia fazer isso. "Fiquei horrorizada, mas não surpresa", disse ela ao receber em sua residência um memorando de 800 páginas, detalhando toda sua atividade naquele aplicativo e em outros, como Instagram e Facebook, com grande riqueza de detalhes.
Difícil não associar esta história à cena em "A Vida dos Outros" quando Georg Dreyman vai até o recém aberto arquivo da Stasi, após a queda do Muro de Berlim, e encontra o material a respeito dele próprio e se choca com seu volume e nível de detalhes. Então, no fim das contas, qual a diferença?
Georg sabia que algo de valor enorme lhe foi roubado, com consequências terríveis, ao passo que Judith se entregou voluntariamente para uma plataforma que transforma as relações entre homens e mulheres em produto, e as sujeita a uma lógica de mercado, sem pestanejar. Georg sabia o que lhe foi roubado. Judith Duportail não sabia o que tinha vendido.
E essa é talvez a provocação que fica ao re-assistir a "A Vida dos Outros": qual o valor da confiança? Quanto valem os relacionamentos genuínos, livres de medo? Quando isto se perde, em nível coletivo, o que toma seu lugar? E por que, em tempos mais recentes, nós nos entregamos tão facilmente a terceiros os quais desconhecemos as reais intenções? O que ganhamos com isso? Podemos olhar para toda essa incerteza com sinceridade, ou podemos dar de ombros, de maneira cínica, e dizer "esse problema é de outra pessoa".
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