O mito conta uma história. Normalmente, o surgimento de um povo está envolvido numa história que conta como aquela gente nasceu e por que foi parar em tal lugar. Mitos contam os feitos dos heróis, as ações de grandes homens e inspiram as gerações futuras. A mitologia canta o que os jovens devem aprender com os anciãos, resgata uma tradição e ajuda a preservar uma cultura. Mas o mito na filosofia ainda vai além disso.
Um mito é uma história que trata de temas importantes acerca de uma civilização ou da própria existência. Os mitos tratam de temas que a razão humana não consegue alcançar por si só, como a origem do mundo, da vida e aspectos que permeiam tais realidades.
São histórias misteriosas que mostram a extensão e profundidade da realidade.
As narrativas mitológicas possuem diversas chaves de leitura, o que faz com que seus significados sejam muito vastos, indo da psicologia à religião, da política à poética.
Platão foi um dos filósofos que mais destacou a importância do mito para a filosofia.
No livro “A Educação Sentimental”, o filósofo Julián Marías explica a relação das barreiras da inteligência humana e sua conexão com os contos de fadas e os mitos:
“Na tradição socrática, Platão interessou-se muito pela definição (horismós), e não se contenta com o nome da realidade que se esforça por conhecer.
[...]
A definição aponta o objeto investigado, mas não o define como é (hoîon esti). O logos, ou definição, não determina a ousía: circunscreve-a ou delimita.
Assim, o mito não é um substituto da definição, mas algo superior a ela. Para Platão, o verdadeiro conhecimento é o mito — não o mito pré-filosófico, mas o que se extrai da definição e possibilita uma condensação da inesgotável realidade”.
Por exemplo:
Ao tentar definir o tempo, um dos possíveis conceitos pode ser a sucessão de movimento do espaço e dos acontecimentos humanos.
Essa definição delimita o tempo diante de outros aspectos da realidade, mas não traz a sua função profunda para a vida humana, não chega à sua essência.
No mito já é diferente.
O mito grego encara o tempo enquanto Cronos, o titã devorador. Cronos devora todos os seus filhos por medo de perder a supremacia. Tudo o que surge no tempo é devorado.
Cronos chegou ao poder do cosmos após destronar seu pai, Urano. O tempo fez com que o Céu (Urano) perdesse a supremacia.
Até que chega um momento em que, com medo de perder mais um filho, a mulher de Cronos esconde seu filho Zeus no reino de Urano, exilado por seu filho Cronos.
Após viver exilado em uma caverna, desenvolvendo-se dia a dia, Zeus se arma do raio produzido pelos ferreiros ciclopes que viviam no reino de Urano, além do tempo.
Com essas armas, após ter passado por um longo exílio, Zeus vence a tirania do Tempo, derrotando Cronos.
Após vencer o tempo, munido de armas atemporais, Zeus alcança a realeza.
“Os mitos suscitam aspectos misteriosos da realidade no interior de suas narrações. O objetivo é que o leitor possa, no contato com essas narrativas, absorver uma plêiade de sentidos —que vai, de alguma forma, preenchendo-o.
Eles demonstram o vivo desejo humano pelo inefável” (professor Marcus Boeira, no curso O mito: entre a ficção e a realidade, disponível no Núcleo de Formação da Brasil Paralelo).
O professor universitário Marcus Boeira destaca três funções importantes dos mitos para a filosofia em seu curso do Núcleo de Formação:
“O intelecto chega ao estágio final das suas operações racionais e percebe, por um ato simplíssimo da inteligência, que perante a consciência ele não é capaz de alcançar todas as concepções a respeito da verdade. Ou seja, o intelecto conclui que não é capaz de tudo” (professor Marcus Boeira).
A filosofia surge de um espanto do ser humano diante da realidade. Um maravilhamento. Com a capacidade racional, o homem busca conhecer a sua existência para tentar responder as perguntas fundamentais, como:
Porém, ao atuar em diversos ramos da vida, a razão descobre que não consegue conhecer todas as coisas, nem mesmo conhecer totalmente as coisas de que já possui alguma ciência.
Os mitos servem para auxiliar no conhecimento das realidades mais complexas.
Um exemplo da ação prática dos mitos são as realidades psicológicas. O mito da teogonia grega apresenta a formação do cosmos. No início de tudo, os dois primeiros deuses eram Urano, o Céu, e Gaia, a Terra, a base material da realidade.
Urano constantemente agredia Gaia com chuvas torrenciais vindas do Céu, tentando conter os vulcões e manifestações explosivas da brutalidade de Gaia.
Esse mito pode ser interpretado como os movimentos mais baixos e materiais do homem.
Uma vontade do mal luta para tomar a vida do homem, enquanto o que há de celestial busca conter esses sentimentos que lhe destroem o ser.
As histórias mitológicas podem levar o homem à autoconsciência.
A vida do homem pode ser interpretada como uma biografia, ou seja, uma narrativa. A substância da vida humana é a própria narrativa.
Ao falar quem é uma pessoa, conta-se a sua história de vida, sua narrativa. O que define essa pessoa são as suas atitudes ao longo de sua própria história.
Para contar quem foi Santo Agostinho, fala-se sobre qual era sua profissão, como foi sua conversão, o que ele fez como bispo e filósofo e quais encargos recebeu em vida. Ou seja, a essência da vida de Santo Agostinho é sua história, bem como de qualquer outra pessoa.
As histórias entram em contato com o centro da vida humana.
As histórias são mais tocantes para as pessoas do que termos técnicos. Por isso, as mitologias são essenciais para o conhecimento humano.
As histórias mitológicas podem ajudar mais o homem do que apenas definições técnicas.
“O mito não determina as condições do que é eterno e inefável, pelo contrário: ele apresenta uma chave possível, uma janela representativa de um mundo que só faz sentido se tomado numa perspectiva em que a história da própria vida e a da humanidade estejam ancoradas na meta-história.
É como se o mito desempenhasse uma segunda função, que é — usando uma expressão de Paul Ricœur — a de solicitude: ele solicita a autotranscendência do ser humano.
O ser humano se vê em um estado de coisas em que se enxerga como alguém incapaz de fazer esse processo; então ele precisa de uma narrativa, e essa narrativa é fornecida pelo mito” (professor Marcus Boeira).
O ser humano não está apenas no tempo, sabe-se que a morte o retirará deste mundo.
O desejo e esperança por algo além leva o homem a conjecturar e buscar respostas para tais questões.
Isso está presente em todas as culturas antigas e modernas, até mesmo em mitologias ateístas.
Como dito na obra de Goethe, O Fausto, as ações do homem só possuem verdadeiro significado quando realizadas diante da eternidade.
Os mitos levam o homem a encarar essa questão. Eles podem fornecer um amparo em como enfrentá-la, como o caso já descrito de Zeus contra Cronos — o tempo.
“Qual destino deve ter um ato humano? Qual aspecto reflexivo deve ter uma ação ou uma abstenção humana desde um ponto objetivo? Se o que eu fiz foi adequado ou não, foi bom ou não, onde vamos buscar esses padrões?
Nós buscaremos esses padrões em modelos que me são apresentados desde um âmbito mimético no primeiro momento — porque aqui é como se estivéssemos num nível meramente estético —, mas à medida que vamos aprofundando não só na leitura do mito, mas na reflexão a respeito da nossa vida no mito e vice-versa, vamos penetrando o mundo dessa terceira função, que é o mundo da significação moral dos atos humanos.
Veja a riqueza extraordinária que o mito tem para a condição humana” (professor Marcus Boeira).
Para aqueles que desejam ler obras mitológicas, é recomendado que se assista o insightBP e as aulas do Núcleo de Formação sobre o tema antes da leitura das obras originais.
As aulas farão com que a leitura faça sentido e seja fecunda. Alguns livros também podem ser importantes para o caso dos mitos gregos. Um deles é O Mundo de Homero, de Pierre Vidal-Naquet.
Algumas das principais obras de mitologia ocidentais são:
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