No cinema, o público vê, mas não enxerga

É tudo falso! O cinema é apenas um truque de mágica. O truque pode acontecer num grande teatro, com um opulento cenário, animais exóticos, mágicos com roupas espalhafatosas e fogos de artifício; ou pode acontecer na rua, usando apenas uma moeda. Mas um truque é um truque. No seu cerne, é um jogo de atenção entre um mágico e o público. O cinema funciona precisamente desta maneira.

O Cinema é uma ilusão

Examinando a unidade mínima do cinema, o fotograma, já se nota quão profunda é essa questão. Não existem imagens em movimento. O que você vê na tela de cinema ou na sua TV são imagens paradas. A sua rápida sucessão cria a ilusão de movimento (devido à permanência da imagem na retina).

Mas esta explicação diz respeito a uma questão apenas mecânica de como a visão funciona. A visão, o olho, mesmo com toda a importância simbólica que tem, é na realidade apenas o palco, onde a mágica aparentemente acontece. Mas nós sabemos que o truque acontece onde o olho não enxerga: atrás das cortinas.

Vêem este chapéu? É apenas um chapéu comum…

O que é atento não é seu olho, é seu cérebro. É lá que a mágica acontece. Antes de mais nada, a lente presente no seu olho projeta na sua retina uma imagem de ponta cabeça. O seu cérebro a inverte. O conjunto do olho com o cérebro é repleto de limitações que nós conhecemos e exploramos de maneira consciente, para criar muitas coisas. Uma delas é o cinema. 

Aqueles de interesse mais técnico, como eu em boa medida, logo começam a fazer perguntas tentando conectar as máquinas e técnicas de criação de imagens à características da percepção humana, procurando uma correspondência entre a “estrutura do truque” e aquilo que o público vê. 

Perguntas como: “por que se filma em 24 fotogramas por segundo? A visão humana funciona assim?”. Obviamente não.

Comparações úteis entre características das máquinas e técnicas com a percepção humana existem apenas por analogia. A meu ver, as máquinas nunca são soluções perfeitas; são apenas as soluções possíveis. É "o que dá pra fazer”. E, às vezes, dá pra fazer muito. Contanto que se saiba com qual limitação humana se está lidando, quer seja para mitigá-la ou explorá-la, é possível atingir resultados impressionantes, como nossa civilização prova e testemunha dia após dia.

No entanto, sabendo-se das limitações físicas do ser humano, em particular da visão, que é o que nos interessa agora, há o elemento que realmente “vende o truque”. A atenção.

Estão prestando atenção?

Chamo de “atenção" a concentração mental em algo em específico interno ou externo a nós, que determina como utilizamos (ou se utilizamos) nossos sentidos. O truque de mágica funciona apenas se o público estiver atento. No entanto, alguns acreditam que os truques funcionam por não prestarmos suficiente atenção. De alguma maneira deixamos algo escapar, e um olhar ainda mais focado revelaria o segredo do mágico.

Na maioria das vezes, o truque funciona exatamente porque prestamos muita atenção. No entanto, o público nunca olha onde quer; olha sempre onde o mágico quer que olhe.

No caso do cinema, qual é o grande truque? O espectador comum pensará em efeitos especiais, ou talvez no fato dos atores interpretarem pessoas que nunca existiram, mas é muito mais básico e simples que tudo isso. Pertence à própria estrutura de todos os filmes. O grande truque do cinema é o CORTE.

Milhões de anos no intervalo entre fotogramas

O corte, isto é, a justaposição de uma imagem com outra distribuída no tempo, é a unidade básica da edição. Este é talvez o único elemento que torna o cinema uma arte em si. Encontramos drama no teatro, luz e sombra na pintura, e tudo isso combinado com música na ópera. O que faz o cinema tão especial? 

O que o torna algo único é a criação de sentido através do corte. O poder deste truque não pode ser subestimado. Um dos cortes mais famosos da história ilustra isso muito bem:

O que você acaba de assistir? Um homem vestido de macaco em cenário arremessa um osso (provavelmente de borracha) para cima. A câmera captura. No momento seguinte, você vê uma miniatura de uma estação espacial inventada, suspensa por fios de nylon num estúdio escuro. 

Certamente, não foi isso que você acha que viu. Você acha que viu um ancestral do ser humano descobrindo o uso de ferramentas, e no momento em que ele joga o osso para cima, andamos milhões de anos no tempo, e vemos o que a descoberta da ferramenta possibilitou; a exploração do espaço. 

O osso e a estação espacial são, na essência, a mesma coisa. Essa conexão de causa e efeito sem que uma palavra seja dita, e a compressão fantástica do tempo, são possíveis única e exclusivamente através do corte. 

O corte não é um ato de subtração, não é uma maneira de remover uma parte indesejada de uma cena. Ele é a própria criação de sentido que torna o ato de contar histórias através de imagens em movimento, não apenas possível, mas espetacularmente poderoso.

Leia o livro 2001: Uma Odisséia no Espaço de Arthur C. Clarke, de onde o roteiro do filme foi adaptado. Ele gasta páginas e mais páginas para fazer o que Stanley Kubrick faz com APENAS UM CORTE.

O fato de vermos TV todos os dias desde os dois anos de idade torna esse truque imperceptível. Somos tão habituados e condicionados dentro desta linguagem que não percebemos o truque. De tanto ser visto, ele se torna invisível.

É tudo mentira, exceto quando é verdade

A edição, o truque do corte, é onde repousa todo o resto. É o primeiro, o mais básico, o mais simples e também o mais poderoso truque. Agora, como disse acima, tal truque só funciona por explorar alguma limitação ou característica do ser humano. Pela potência do efeito que tem, o que poderia ser isso?

Walter Murch, famoso editor de cinema, diz em seu livro Num Piscar de Olhos, que o truque do corte funciona pois ele talvez toque na maneira que a mente humana organiza a experiência do mundo que temos. Recebemos do mundo um fluxo contínuo de estímulos, mas percebemos apenas certos aspectos dele, determinados pela nossa atenção, e nos recordamos de uma parte ainda menor. 

Na ideia de Murch, o ato de piscar funciona como o corte. Ele ajuda a organizar o mundo, separando e juntando ao mesmo tempo, como um corte de um editor de cinema. Ele conta que notava ao observar uma pessoa conversando com outras duas que, conforme ela direcionava seu olhar de uma pessoa para outra durante a conversa, ela piscava no meio. É como se ela cortasse fora o espaço entre as duas, aproximando-as, em sua percepção. 

Portanto, é possível que a edição cinematográfica, o corte, aproxime-se desse fenômeno. Talvez, a criação de ideias através da sequência de imagens, na qual o tempo entre certos momentos e eventos é comprimido, e situações distantes se aproximam e criam, por proximidade, um novo significado, seja parecido à maneira como nós organizamos nossas experiências em nossa memória, e por esta razão funcione tão bem.

Ao pensar que é impossível mudarmos instantaneamente de ângulo de visão, como o corte faz, essa explicação parece jogar um pouco de luz nesse fenômeno. Pode ser que seja este o apelo do cinema. Quem sabe não é  por isso que ele nos dá essa experiência onírica tão envolvente? Quantas vezes não nos contaram sonhos dizendo “parecia um filme”?

Para meu próximo truque…

O cinema talvez seja o maior truque de mágica de todos os tempos. Esse truque pode, em toda sua manipulação e exploração de limitações que todos nós temos, tornar-se arte. E como outras artes, ela não é verdade em si, mas pode apontar para ela, pode nos direcionar em sua descoberta. 

Existe um limite? Quem determina quando o truque vira arte? Eu diria que é o espectador. Mas não qualquer espectador. Apenas o espectador atento. E digo que vale muito a pena prestar atenção. Aqueles que não o fazem são levados e convencidos facilmente, e se tornam totalmente alheios ao que tudo aquilo implica. 

No entanto, aqueles que prestam atenção de fato podem receber duas recompensas: a primeira é entender o truque e traçar um limite para aqueles mágicos desonestos que querem levar para onde não se quer ir. A segunda, é saber onde olhar enquanto o truque acontece, e apreciar quando ele é executado com excelência, apontando para uma experiência humana possível que apenas aquele truque que é o cinema consegue de maneira tão convincente condensar.