Mariana Goelzer é escritora e roteirista. Mantém uma coluna sem fórmulas pré-concebidas, nem ideias pré-formatadas, criando um um local de reflexão livre, mas comprometida, sobre pensamentos que careciam do devido tempo e espaço para florescer.
Durante muitos anos, vi meus projetos e projeções rondarem o mito da ascensão profissional como um equivalente para realização pessoal. Não é que a família fosse aí uma opção ausente do jogo - ela raramente é. É que ela não figurava como a peça-mestra do tabuleiro, a partir da qual elaborava meu futuro e a qual eu deveria defender, acima de tudo, com unhas e dentes.
Com o passar dos anos, essa configuração da carreira como fonte essencial de satisfação emocional perdeu força, mas não deixou de ser um referencial, um ponto para o qual eu me voltava pensativa; uma outra estrada que me convidava sedutoramente, e a que eu recusava, ainda que um tanto vacilante.
O impulso, agora, não era propriamente deixar para trás a profissão como esse campo de preenchimento interior, mas tentar conjugá-la com o cuidado da casa e a dedicação ao relacionamento. Sem me dar conta, eu estava inadvertidamente no meio do fogo cruzado entre dois mundos, o antigo e o moderno, tentando conciliá-los.
Como muitas mulheres na mesma posição, tive que confrontar aquela velha sabedoria de que não nos é possível abraçar todas as missões do mundo. Querer tudo significava, simultaneamente, abrir mão de algo dentro das duas esferas.
O que eu não esperava era descobrir que esse conflito interno, com todas as suas derivações, não era uma casualidade da nova circunstância social, mas antes a execução precisa do plano da pessoa que gestara para as mulheres o ideal de encontrar no trabalho o eixo central de orientação da existência.
Essa revelação me chocou. Primeiro, porque Betty Friedan, feminista dos anos 1960 responsável por elaborar essa proposta, era coautora dos meus atos, palavras e sentimentos. Segundo, porque a descoberta tinha implicações práticas urgentes que não podiam ser negligenciadas e para as quais eu não tinha uma resposta convicta.
Terceiro, porque isso me forçou a questionar quantas outras vozes e forças das quais eu discordo atuam sobre mim, participando da determinação do meu contorno final, sem que eu tenha a menor ciência disso.
Entre tantas ponderações pertinentes, muitas ainda em fase de amadurecimento e sem formulação definitiva, ficou a rememoração de que as nossas lembranças não
são o único ponto em que podemos buscar apoio para determinar de onde vêm as nossas ideias. A cultura preserva os caminhos intelectuais percorridos pelas mentes na formatação das lentes que hoje usamos para enxergar a realidade.
Reside aí uma outra fonte nesse processo de investigação para escavar aquilo que, sem ser nosso, tornou-se parte de nós.
Trocando os termos, podemos apontar que a história guarda o segredo de quem somos mais nitidamente, porque expõe as correntes de pensamento que nos subjugam e nos localizam no tempo.
Por isso, procurar o conhecimento é desvendar a si mesmo e, ao mesmo tempo, alcançar um instrumento para remodelar-se conscientemente a imagem e semelhança do que, de fato, nos pareça mais precioso. Uma tarefa que, sem um delinear das ideias que agem sobre nós, dificilmente conseguiremos empreender.